FRATERNIDADE ROSACRUZ  in LUSITANIA

Lusitano Centro Rosacruz Max Heindel

Autorizado por The Rosicrucian Fellowship

Rua de Cedofeita, 455 1º sala 8 * 4050-181 PORTO

Mente Sã,  Coração Nobre e Corpo Puro

 
 

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    Na Terra dos Mortos que Vivem

Prentiss Tucker

Uma História Ocultista

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 Título original: In the Land of the Living Dead

An Occult Story

By

Prestiss Tucker

 

Prefácio

 

      O autor, Prentiss Tucker foi um dos primeiros discípulos de Max Heindel, Iniciado Rosacruz e Fundador da Fraternidade Rosacruz (The Rosicrucian Fellowship), Associação Internacional de Cristãos Místicos, fundada em 1909 na Califórnia, Estados Unidos da América.

Seus ensinamentos, fundamentados na Advertência de Cristo - “Ide, Pregai o Evangelho e Curai os Enfermos” - tem como objectivo conscientizar o ser humano a desenvolver suas potencialidades, ainda latentes na maioria, que lhe darão oportunidade do conhecimento consciente dos Mundos Espirituais, livrando-o das mistificações que frequentemente ocorrem em pessoas não preparadas.

Na Terra dos Mortos que Vivem é uma fantástica história de um jovem místico que relata suas experiências durante a Primeira Guerra Mundial.

A Fraternidade Rosacruz ao editar esta pequena obra romanceada de Ocultismo, está apresentando de forma mais popular, os conceitos da FILOSOFIA ROSACRUZ, os quais poderiam dificultar ao público leigo a sua compreensão tão objectivamente exposta por Max Heindel em sua obra básica "O CONCEITO ROSACRUZ DO COSMOS" e ao longo de toda a sua bibliografia.

Aqui, nesta singela composição, o leitor encontra de forma sistematizada e, portanto mais acessível, um dos pontos fundamentais que, a par da incompreensão natural do leigo a respeito do assunto, bem como de outras organizações que honestamente referem-se ao tema, sem que entretanto tenham a assistência dos Irmãos Maiores, não podem esclarecer devidamente o problema da vida e da morte.

Assim, temos neste romance os esclarecimentos surpreendentes do que ocorre àqueles que ingressam nos planos internos, seja por morte natural ou violenta, bem como por meio de experiências que lançam o indivíduo despreparado em novas condições de vida, como ocorreu com Jimmy, o herói deste romance - acidentalmente "lançado" aos planos internos devido à explosão de uma granada. Na sua perplexidade natural descrita pelo Autor, vê-se que ela é anulada pelos esclarecimentos dados pelo "Irmão Maior" que, na realidade, é um dos Doze Irmãos Maiores que compõe a Ordem Rosacruz, cujo "cabeça" - orientador - é o Venerando Christian Rosenkreuz - o Cristão Rosacruz.

Assim, o relato fantasioso dado pelo Autor, tendo como personagem um homem comum, envolvido com suas preocupações pessoais, com seu futuro profissional, transmite ao leitor a mensagem dos Irmãos Maiores, de que a actividade pessoal de cada ser humano tem uma projecção que ultrapassa os limites da existência física, e que o trabalho na "Vinha do Senhor" tem extensão cósmica, e portanto, a MORTE NÃO EXISTE.

"O Mundo Físico e o Mundo do Desejo não são separados um do outro pelo espaço. Estão “mais próximos do que as mãos e os pés”. Não é necessário deslocar-se para ir de um a outro, nem para ir de uma região a outra que lhe seja próxima. Assim como em nosso corpo se encontram os sólidos, os líquidos e os gases, interpenetrando-se uns aos outros, assim também estão as diferentes Regiões do Mundo do Desejo dentro de nós. Podemos outra vez comparar as linhas de força pelas quais os cristais de gelo se formam na água com as causas invisíveis originárias do Mundo do Desejo, as quais aparecem no Mundo Físico e dão-nos incentivo para agir em qualquer direcção.

O Mundo do Desejo, com seus inúmeros habitantes, compenetra o Mundo Físico como as linhas de força compenetram a água invisível mas presente e potente em toda parte como "causa" de tudo no Mundo Físico". Max Heindel

 

 

 

CAPITULO I

UMA VISITA AOS PLANOS INVISÍVEIS

Tudo decorreu de uma granada alemã de alto poder explosivo.

Nada acontece sem uma causa. Podemos dizer que esta história começou na Alemanha quando Gretchen Hammerstein deu o retoque final a uma determinada granada de alto poder explosivo e, com o contacto de seus dedos, encheu-a com as vibrações de seu ódio pelos americanos. Mencionaremos as várias ocorrências cada uma como resultado de uma série de circunstâncias - que contribuíram para que esta determinada granada fosse levada ao "front" alemão naquele exacto momento, para aquele exacto lugar. Mas, para acompanhar estes acontecimentos, quase infinitos em número, necessitaríamos de muita paciência.

Por isso, retomaremos a história exactamente quando esta granada altamente explosiva estourou nas trincheiras americanas espalhando, além de seu material, carga e fragmentos visíveis, o ódio que Gretchen Hammerstein havia depositado nela.

Jimmie Westman estava debruçado sobre o muro da trincheira, localizada muito próxima à linha alemã, espreitando através de um bem camuflado buraco, que era utilizado tanto para observar-se os tristes e horríveis estragos ocorridos na Terra de Ninguém, como para alertar contra ataques de surpresa. A granada explodiu a poucos passos na retaguarda, mas Jimmie não percebeu isso. Demorou bastante até tomar conhecimento do que tinha ocorrido, e é sobre os factos que aconteceram entre a explosão da granada e o momento em que Jimmie foi capaz de reconstruir tudo, que desejo relatar. Foram eventos consideráveis; eles produziram uma grande impressão em Jimmie e mudaram completamente suas ideias da vida.

Como disse, algum tempo se passou antes que Jimmie recuperasse a consciência após a explosão. Para ser exacto foram praticamente três dias. Enquanto ele permanece nesse estado de coma vamos tomar conhecimento de sua vida e história.

Jimmie não nasceu "de pais pobres mas honrados". Seus pais embora não fossem ricos, deram-lhe uma boa educação. Ele havia terminado o liceu e estava frequentando o curso de medicina quando a guerra rebentou. Eu disse que ele estava frequentando medicina. Gosto de Jimmie e reluto em dizer que passava a maior parte do seu tempo nos campos de futebol e no carteado, não obstante, era isto o que realmente acontecia. Ele era o protótipo do jovem americano limpo, honrado, um pouco descuidado, ávido por ter sucesso e para se sobressair tanto no trabalho como no desporto. Sentia-se também deslumbrado pela adulação dispensada aos atletas proeminentes no colégio que frequentava.

Contudo, estava empenhado no estudo da medicina, talvez eu devesse dizer, parcialmente empenhado, e demonstrava realmente interesse pela profissão que escolhera, embora não tivesse progredido o suficiente para ter um conhecimento mais profundo da matéria médica. Ele tinha absorvido um pouco do espírito científico das conferências que havia escutado e sua mente havia adquirido um leve traço de cepticismo, o que deixou sua mãe um pouco preocupada. Porém, ela sabia que seus antigos ensinamentos estavam bem enraizados e que o carácter de seu filho era bastante forte para que o cepticismo que o circundava só pudesse perturbar superficialmente sua vida jovem e correcta.

Mas Jimmie possuía uma alma indagadora, e enquanto as trivialidades aparentemente ilógicas e não científicas que ele ouvia do púlpito quando ia à igreja pouco efeito lhe causassem, as objecções apresentadas pelos médicos e estudantes com quem se associava pareciam-lhe, também, sem força e sem fundamento. Ele oscilava entre as duas, mas não era controlado por nenhuma, embora no fundo de seu coração estivesse inclinado a ser bastante religioso, como a maioria das pessoas o são quando têm essa oportunidade.

No primeiro ano de sua vida universitária, a grande guerra (1914) começou. Foi praticamente no fim do primeiro ano, um pouco antes dos exames finais, e quando ele foi para casa para as férias de verão, o país todo estava agitado. Aqueles que tinham maior visão percebiam que a guerra envolveria os Estados Unidos. Jimmie começou a meditar, reflectindo sobre a situação do mundo, e quando voltou a seus estudos, no Outono, foi com a firme convicção de que os Estados Unidos seriam logo forçados a entrar na guerra e que ele, necessariamente, estaria envolvido. Até aquele momento, ninguém havia previsto que pudesse haver uma escassez de médicos, e Jimmie, tendo a certeza que a luta era justa e que era seu dever ajudar, embora seu país ainda estivesse fora, resolveu alistar-se com os Canadenses, enquanto cursava o segundo ano de medicina. Em primeiro lugar, foi visitar seus pais para conseguir convencê-los a pensar como ele, embora esta tenha sido a tarefa mais difícil a que se propôs.

Estava em casa nessa missão, quando soube da morte de uma grande amiga sua. Tinham sido criados juntos, e essa perda dissipou um sonho que havia acalentado em sua mente e para o qual estava inconscientemente trabalhando.

Ao alistar-se, foi lançado no grande e agitado caldeirão da guerra.

Quando os Estados Unidos entraram na guerra, ele já era um veterano experiente, apesar de sua pouca idade. Tentou e conseguiu sua transferência das tropas canadianas para as de seu país, onde foi recebido com grande entusiasmo. Quando a granada explodiu, ocasionando uma mudança tão grande em sua vida, ele era segundo tenente com uma boa chance de ser promovido.

Ele não ouviu nem se apercebeu da granada e, como já disse, não sabia que tinha havido uma explosão, de modo que ficou muito surpreso ao se encontrar, de repente, em uma parte do país que ele não conhecia. Era um lugar amplo, semelhante a uma campina, com uma suave subida e ele estava andando despreocupadamente por ela, como se tivesse todo tempo à sua disposição. Subia lentamente por esse caminho, surpreendendo-se porque, segundo se lembrava, ele deveria estar em seu posto na trincheira. As coisas estavam um pouco diferentes, mas ele não conseguia compreender o que lhe acontecia.

Parecia estar movendo-se com uma considerável facilidade, muito mais do que estava acostumado, pois a permanente lama deste país grudava terrivelmente nas botas e era uma tarefa difícil colocar um pé na frente do outro. No entanto, agora, ele estava caminhando facilmente e sem qualquer esforço, mas não sabia para onde ia nem de onde vinha.

A trincheira não estava à vista, mas ele estava andando tão sem esforço que não lhe fazia qualquer diferença, pois, sem dúvida, poderia encontrá-la, apesar do seu limitado conhecimento de francês.

Graças a Deus não se encontrava atrás das linhas inimigas. Mas, alto lá!

Se estava atrás de sua próprias linhas e não sabia como havia chegado lá, por que não poderia estar atrás das linhas inimigas sem sabê-lo?

Sua memória estava voltando aos poucos. Era como se tivesse acordando de um sono profundo e estivesse voltando a si.

Mas se ele tivesse adormecido, por que nenhum dos companheiros o acordou antes que toda a linha tivesse assim avançado?

Mas, pelo amor de Deus! Onde estava a trincheira? Onde estavam o acampamento, as trincheiras de comunicação, as estradas, tudo? Que lugar é este, esta campina tão bonita que se eleva tão suavemente?

A linha deve ter avançado e ele foi deixado para trás em seu sono. Isto era evidente, porque, se a linha tivesse recuado, ele certamente teria sido acordado na retirada ou, caso contrário, o inimigo tê-lo-ia acordado quando se apossasse das trincheiras. Não, a linha tinha avançado e, ele, de algum modo, continuou dormindo mas, evidentemente, tinha caminhado em seu sono até este lugar, embora não discernisse que lugar era esse.

Não conseguia lembrar-se de ter deixado a linha de fogo de onde observava o movimento inimigo, mas isso era só um mero detalhe. O objectivo principal, agora era descobrir onde estava o comando e juntar-se a ele. Ele poderia encontrá-lo facilmente porque sabia como orientar-se pelo sol.

Involuntariamente, olhou para cima. O sol não estava visível, embora fosse pleno dia e não houvesse névoa aparente.

Jamais tinha visto na França, um trecho tão longo sem ser habitado. Ou havia cidades, vilas e fazendas, ou a terrível devastação por onde os inimigos haviam passado. Mas esta campina não mostrava nem uma coisa nem outra. Era na verdade, uma campina imensa, especialmente para a França. Era só colocar alguns tractores aqui e o temor da fome se dissiparia, pois havia terra suficiente para alimentar um país.

Mas o tempo passava e ele sentia a necessidade de se apressar; também precisava pensar em alguma desculpa para justificar sua ausência, pois o capitão era muito severo e o sonambulismo talvez não fosse uma razão válida para se ausentar de seu posto.

- Por que você não desliza?

- O que você quer dizer por “deslizar”?

Ele virou-se para ver quem havia falado, pois não tinha ouvido nenhum passo e julgava estar sozinho. Viu uma jovem andando ao seu lado ou, pelo menos movendo-se ao seu lado, pois aparentemente ela não estava andando de maneira convencional. Ele a conheceu bem e ao reconhecê-la, sentiu-se empalidecer, pois a jovem ao seu lado era aquela que tinha sido sua amiga muito especial. Mas, disseram-lhe na última visita à sua casa, que ela tinha, bem, que ela tinha morrido enquanto ele estava na faculdade, um pouco antes de voltar para casa para dizer adeus a seus pais antes de alistar-se. Ele deve ter sido mal informado. Olhou para ela, afastou-se um pouco, beliscou-se e ficou sem saber o que fazer ou o que dizer. Talvez ela não tivesse morrido, talvez tivesse sido mandada para um manicómio e estivesse agora na França por algum engano e estivesse delirando ao aconselhá-lo a "deslizar".

Ele observou-a novamente. Meu Deus! Ela estava deslizando! Céus! Teria ele também enlouquecido?

Uma risada interrompeu sua perplexidade. Era o habitual riso alegre e espontâneo que ele tinha conhecido tão bem.

Por Deus! Ela estava rindo dele. Perplexo? Bem, quem não estaria numa situação semelhante a esta?

Algumas vezes, os pensamentos passam pela mente com uma velocidade incrível e os pensamentos que eu estou narrando, aparentemente demoravam muito tempo para ocorrer, mas, na realidade, foram quase instantâneos e praticamente não demoraram muito. Ainda que tivessem uma sequência lógica, pareceram-lhe, naquele momento, muito lentos embora bastante racionais.

Ela estava rindo dele! Fantasmas não riem. - Simplesmente não riem, é tudo. Todos sabem que fantasmas não riem. E ela falava-lhe sobre deslizar. Isto mostrava que ela estava louca e confirmava a teoria do manicómio, mas, neste momento, ele olhou novamente para os pés dela - ela realmente estava deslizando. Pelo menos ela não estava andando, alçando um pé para colocá-lo na frente do outro. Não, ela estava deslizando e rindo dele.

Além disso, fantasmas são tristes, perturbados, amantes de escuridão, de cemitérios, da meia-noite, de mistérios e de assustar as pessoas. No entanto, aqui estava um que, se realmente fosse um fantasma, estava olhando para ele com um rosto realmente lindo, feliz, aparentemente alegre, franco e de uma maneira afectuosa divertindo-se com ele, - com ele!

Lembrava-se muito bem dela. Conheceu-a bem. Ele tinha sido... bem, para dizer a verdade... ele havia pensado que talvez quando se formasse... oh! bobagem... ele devia estar sonhando. Ele estava na França, tinha vindo para lutar contra o Kaiser e preparar o mundo para a democracia, e isto era um trabalho sério.

No entanto, ela estava ainda rindo dele. Como tal engano poderia ter acontecido? Tinham-lhe contado tudo sobre ela. Tinham-lhe repetido a triste notícia várias vezes, pois sabiam o quanto ele a estimava. Porém eles devem ter cometido um engano. Ele tinha que acreditar nos seus próprios olhos.

Meu Deus, como ela estava linda! Ela sempre foi bonita, linda, mas agora parecia radiante. Estava andando suavemente, com um certo passo que não poderíamos descrever, mas que poderíamos chamar de “ponta dos pés”.

Ela avançou um pouco à sua frente e virou-se rindo de uma maneira tão natural, como antigamente, que ele começou a rir também. Os acontecimentos eram muito sérios, mas havia tanta alegria ao seu redor, com uma jovem tão bonita sorrindo para ele, que se tornou difícil imaginar que o inimigo estivesse tão próximo e que tanto sofrimento humano os circundasse.

De repente, ela ficou séria como se houvesse adivinhado seus pensamentos.

- Não pude evitar, Jimmie, você parecia tão desnorteado.

- Realmente estou desnorteado. Como você chegou aqui na França? E por que me disseram que havia – ido. Ele procurou sem êxito, uma maneira de expressar o pensamento.

Ela respondeu seu dilema com um leve sorriso.

- Não tenha medo de dizer isso, Jimmie.

Ele estava com medo de dizer isso, portanto retrucou:

- Como você chegou aqui?

- Eu fui enviada.

- Olhe, Marjorie, não me engane. Como você chegou aqui na França?

- Acredite, Jimmie, eu não estou brincando; verdade Injun[1], como costumávamos dizer, eu fui enviada, acredite, mas eu pedi para ser enviada, ela acrescentou. Os outros estavam tão ocupados e não havia muita coisa que eu pudesse fazer, mas eu sabia que precisava ajudar você e também sabia que você ficaria alegre em me ver, então, pedi permissão e o Irmão Maior [2] concordou; ele é sempre tão bom para mim.

A teoria que ela estivesse num manicómio recebeu um novo impulso com esta afirmação. O "Irmão Maior" deve ser um dos médicos, mas ela não se referiu a isso como se estivesse louca. Na verdade, ela estava radiantemente linda agora, muito mais bonita do que na última vez que a vira, e estava falando racionalmente. Mas quem era o "Irmão Maior"? Ela era filha única. Deve ser o médico.

Uma vez ele tinha estado em um manicómio com um grupo de visitantes e não havia visto nenhuma mulher bonita. Mesmo que alguma tivesse sido bonita, a expressão dos olhos teria dissipado qualquer beleza física. Mas esta jovem dançando, deslizando, rodopiando ao seu lado, com seus olhos azuis e cabelos loiros, era tão desconcertante, tão surpreendentemente linda, além disso, seus olhos não tinham nenhum sinal daquele olhar fixo ou sem foco que torna tão horrível observar-se uma pessoa insana.

E, acima de tudo, ela podia deslizar! Deus bendito! Ele tinha esquecido esse fato. Ela podia deslizar! Como alguém podia deslizar? Não era possível fazer isso, a não ser sobre patins...

- É fácil deslizar. Você pode fazê-lo facilmente!

- Eu! Como você sabe o que eu estava pensando?

- Bem, eu posso saber através de sua aura.

- Minha o quê?

- Aura. Sua aura! Você não sabe que você tem uma aura?

- Nunca ouvi isto antes. Eu recebi uma medalha por tiro ao alvo, mas não me deram nenhuma aura e sei que não trouxe nenhuma comigo.

Ela dançava frente a ele, à medida que ele andava, deslizando olhando-o intencionalmente, primeiro de um lado e, logo a seguir, de outro, sempre rindo com aquela sua risada vibrante tinindo tão cheia de alegria e graça. Ela estava rindo e não podia falar por alguns momentos. Ele não sabia qual era a brincadeira, mas devia ser muito interessante porque ela estava tão feliz e tão linda que ele a alcançou e tomou-lhe a mão. Dançaram juntos, rindo, ela dele e ele de si, alegria que ele não podia entender.

Por Deus! Ele tinha esquecido!

De conformidade com todas as regras, ele devia estar exausto. Desde que o grande bombardeio tinha começado há vários dias, ele não sabia o que era descanso; no entanto, aqui estava ele dançando com esta linda jovem, como se estivesse viçoso como uma flor. Ah! Mas agora ele sentia-se cansado, muito cansado. Isto mostrava a força da mente sobre a matéria, pois antes havia esquecido sua exaustão na alegria de reencontrar sua amiga. Agora, ele mal podia levantar um pé depois do outro.

Ela retirou sua mão com aquela expressão antiga e familiar que aparentava estar aborrecida.

- Você não está cansado! Você só pensa que está. Agora, ponha na sua mente que você não está cansado.

- Eu não posso, Marjorie! Eu estou exausto. Eu não durmo há duas noites, o caminhar na lama e tudo mais, Marjorie, uma pessoa não pode fazer isso durante três dias e não se sentir cansada.

- Veja Jimmie, você admite que não tinha nenhuma sensação de cansaço no começo? Quando estávamos andando e você perguntou como eu vim até aqui, você não estava cansado porque não estava pensando nisso, mas agora, só porque você acha que deve ficar cansado você fica cansado. Vamos sentar um pouco.

- Está muito húmido aqui para você sentar no chão; você vai pegar um resfriado mortal.

Ela sorriu para ele.

- Não, eu não vou pegar um resfriado mortal. É bem seco aqui. Veja como o chão está. Além disso, não posso pegar um resfriado mortal. Há três razões. Foi por isso que vim até aqui, para explicar tudo, mas não sei como começar, Jimmie.

Ele olhou para o chão. Na verdade, ele estava perfeitamente seco, como ela havia dito.

- Está bem, vamos sentar então, mas lembre-se que eu tenho pressa pois preciso apresentar-me logo, de modo que não posso ficar senão por um ou dois minutos. Mas, o que você tem para me dizer? E por que não sabe como começar? Nunca soube que você seria incapaz de terminar uma conversa, Marjorie.

- Oh Jimmie! É difícil contar-lhe. Você não vai acreditar em mim.

- Sim, eu vou, Marjorie. Eu acredito em tudo que você disser. Mas há algumas coisas bastante estranhas acontecendo esta manhã que eu não entendo. Então, como você veio até aqui?

- Como eu lhe disse. Fui enviada. Mas eu pedi para ser enviada porque eu queria ajudar você. E agora eu não sei como explicar.

- Quem a mandou, Marjorie?

- O Irmão Maior. Oh, ele é tão gentil e bom para mim.

- Quem é esse Irmão Maior - um médico?

Ela sorriu, um pouco triste mas muito docemente.

- Está lembrado do que pensou quando eu falei com você a primeira vez e você olhou para ver quem era?

- Sim, lembro-me bem do que pensei mas... mas... você não sabe o que me tinham dito.

- Oh sim, eu sei, pois eu estava lá quando lhe contaram e eu vi você se virar e engolir em seco. Eu sei que lhe disseram que eu estava... estava... morta.

- Sim. Foi exactamente o que me disseram, e eu acreditei porque todos me acompanharam e mostraram o túmulo, e... e...

- Sim, Jimmie querido, sei de tudo pois estava lá e ouvi tudo, e vi como você saiu aquela noite para o campo e para aquela estradinha na qual costumávamos passear e, como você chorou, chorou quando julgou... que ninguém o via. Sim, eu sei de tudo, Jimmie, porque eu estava lá.

- Você! Lá!

- Sim Jimmie, meu querido amigo, meu querido, querido amigo. Eu estava lá e vi sua tristeza e coloquei meus braços ao seu redor e tentei confortá-lo. Eu estava lá, pois é verdade o que eles lhe contaram, é verdade.

- Você estava, você está...?

- Sim, querido amigo, eu estava morta. Pronto! Já disse.

Ela sorriu através da lágrimas, pois estava realmente chorando agora.

- Eu devo usar esta palavra horrível. Ela precisa ser dita apesar de não ser verdade, não é verdade Jimmie. Nós nunca morremos. Nem você nem eu estamos mortos. Não! Nós estamos mais vivos do que antes, porque estamos um passo mais perto da grande Fonte de toda vida e amor, e sei que isto é verdade porque o Irmão Maior me disse. Ele é tão elevado, tão bom, sabe tudo, Jimmie e ele conhece você e tudo sobre você e ele também o ama, Jimmie. Sei que posso ajudá-lo e tenho permissão para relatar-lhe mais do que é possível contar à maioria dos soldados, porque você é capaz de suportar mais do que a maior parte deles. Sei que vai acreditar no que eu lhe disser porque o Irmão Maior me afirmou isso. E, oh! Jimmie querido, não se preocupe porque agora você será capaz de fazer muito mais quando tiver aprendido sobre a guerra, sobre outras coisas e sobre o Mestre.

Ela falava agora como se estivesse murmurando e com admiração, fazendo com que seu rosto ficasse ainda mais bonito do que antes.

- Você vai aprender sobre o Mestre e como podemos trabalhar para Ele, e talvez, talvez se você trabalhar muito para Ele, Jimmie, algum dia você O veja. Eu O vi uma vez - ela acrescentou estou orgulhosa - eu O vi uma vez, de longe. Acho que Ele olhou para mim e eu me senti tão feliz que dancei e cantei por um longo tempo. Mas isto foi antes deles me deixarem executar este trabalho de guerra que está sendo realizado aqui. Primeiro, eles disseram-me que as condições eram muito ruins para eu tentar ajudar enquanto não ficasse mais forte, mas depois, permitiram que eu ajudasse um pouco, especialmente com as crianças. Realmente, gosto muito de receber os pequenos logo que eles chegam aqui. Eles parecem tão amedrontados e tão frágeis, assim procuro niná-los para que durmam e para que percebam que estão rodeados de amor deste lado, e não por aquele terrível ódio que dominava a pobre Bélgica. Sinto tanta pena dessas crianças. Ultimamente, tenho procurado ajudá-las muito.

Jimmie não sabia o que era uma aura quando isto foi mencionado, mas agora, ele via Marjorie rodeada por uma nuvem brilhante, uma luz radiante da qual parecia inconsciente, mas da qual ela era o centro. Isto a tomou ainda mais linda do que nunca e Jimmie recuou um pouco sentindo-se indigno de estar tão próximo de um dos santos de Deus.

- Desde que comecei este trabalho - Marjorie continuou - não dancei tanto quanto hoje, pois estou muito feliz em vê-lo e poder ajudá-lo. É a primeira vez que me deixam encontrar um dos soldados que chegam, pois, algumas vezes, é uma situação muito perigosa. São necessárias muita força e muita sabedoria e eu não tenho nenhuma das duas, mas tenho uma coisa que conta mais, muito mais.

Ela virou-se e murmurou as palavras para si mesma. Jimmie não tinha a certeza, mas pareceu-lhe que as palavras eram "Eu tenho amor."

- Oh, Marjorie! Você quer dizer que eu estou - o que acabamos de dizer?

- Sim, você está, Jimmie, mas não deixe que essa descoberta o perturbe, pois ela é realmente uma vantagem. Existem várias razões para justificar o fato de você estar aqui e vou dizer-lhe algumas delas. Mas você tem sorte, porque o Irmão Maior está vindo em seu encontro."

- Eu não quero conhecer nenhum Irmão Maior. Quero falar com você.

Ele adiantou-se e pegou-lhe a mão.

- Se eu estou morto, você também está. Por isso, nenhum de nós tem qualquer vantagem. Tenho certeza que você não parece nem um pouco morta e eu não me sinto morto. Não consigo entender o que está acontecendo.

 

CAPÍTULO II

A EXPERIÊNCIA DE UM SARGENTO

- Oh, Jimmie! O Irmão Maior está chegando! Oh! Estou ctão contente. Deve ser porque ele quer falar com você pessoalmente.

- Bem, eu preferia que ele não viesse. Eu quero falar com você.

- Aqui está ele.

Jimmie virou-se a um gesto de Marjorie e viu em pé a sua frente, um homem um pouco além da meia-idade, alto, erecto e com nada peculiar que chamasse a atenção, a não ser a capacidade de inspirar nos outros o sentimento de estarmos na presença de um ser de grande poder. O homem curvou-se levemente e, enquanto Marjorie e Jimmie erguiam-se, ele disse:

- Conheço-o muito bem, Sr. Westman, um pouco pela ajuda de nossa amiguinha aqui, - e ele afagou o cabelo de Marjorie suave e carinhosamente. Enviei-a para que o encontrasse primeiro, mas não devemos sobrecarregá-la. Quero que venha comigo por alguns momentos e mais tarde você poderá ter uma longa conversa com ela.

Os modos e o tom do recém-chegado transmitiam tamanho ar de autoridade, que Jimmie nem por um momento pensou em retrucar. Ele simplesmente respondeu ao pequeno e gracioso gesto de adeus de Marjorie e voltou-se para caminhar ao lado do homem a quem Marjorie chamou de "Irmão Maior".

Eles andaram por algum tempo em silêncio, um silêncio que Jimmie achou melhor não interromper pois, de algum modo que ele não podia explicar, sentiu que este homem era um "grande personagem" nesse país, então, acompanhou-o em silêncio até que o homem iniciasse a conversa.

Andaram alguns passos antes do silêncio ser quebrado. Enquanto isto, Jimmie tinha olhado furtivamente ao seu redor para ver onde tinha ido Marjorie, mas, para sua surpresa, ela não estava a vista embora ele tivesse certeza que podia vislumbrar algumas milhas em todas as direcções.

- Você descansou bastante - disse seu companheiro finalmente - e não vai ser cansativo para você se eu delinear brevemente alguns deveres que serão seu privilégio cumprir nesta nova vida para a qual acaba de entrar. Mas, antes disso, vou mostrar-lhe um pouco do que aconteceu e está acontecendo. Assim, que se sentir pronto para a informação eu lhe mostrarei por que foi permitida que essa guerra ocorresse no mundo e exactamente de que maneira sua ajuda será necessária.

As coisas são um pouco diferentes aqui do que você está acostumado, e quero chamar-lhe a atenção para um pormenor que Marjorie hesitou em explicar. É sobre o método de sua locomoção. Você não precisa caminhar do modo antigo, é muito mais conveniente e mais rápido usar o que Marjorie sugeriu-lhe no início, deslizar. Todos nós aqui locomovemo-nos assim. Requer apenas um pequeno esforço de vontade, e é tão superior a andar, quanto o andar o é para o engatinhar. Na verdade, quase não há limite de velocidade no deslizar e sem ele seria impossível fazer o trabalho que precisa ser feito nesses tempos árduos. Tente.

Ao explicar isso, ele começou a deslizar como Jimmie havia visto Marjorie fazer. Então, Jimmie esforçou-se e, para sua surpresa, viu que podia locomover-se como fizera muitas vezes sobre o gelo ao patinar, só que o movimento era o resultado de um esforço de vontade e não exigia nenhuma acção do corpo. Ele estava encantado como uma criança com este recém adquirido poder, e deslizou como um patinador no gelo, traçando, várias vezes, a velha e familiar figura do oito e outros desenhos antes de acalmar-se e postar-se ao lado de seu novo conhecido.

Há muito de menino em cada homem, da mesma maneira que existe muito de homem em cada menino e Jimmie estava francamente absorvido e interessado nas possibilidades de deslizar e no fato de estar ao lado do Irmão Maior sem se sentir cansado, sem fôlego e também sem os efeitos que geralmente seguem-se a este extenuante exercício, do que no fato incrível de haver real e verdadeiramente cruzado a "Grande Divisa" e na iminência de aprender o que havia no "Outro Lado da Morte ".

Ajustando-se à velocidade de seu nobre guia, ele sentiu-se um pouco envergonhado com sua exibição de entusiasmo e começou a desculpar-se de uma maneira indirecta.

- Esta maneira de deslizar é uma novidade para mim e parece que é exactamente o que eu sempre quis fazer. Sonhei exactamente com isso algumas vezes, e quando percebi que podia deslizar era como se estivesse fazendo novamente algo antigo, familiar.

- Você não está errado. É uma antiga e familiar “sensação”.

- Pode ser que meus patins de gelo é que tornaram isto natural para mim.

- Não. Pareceu-lhe familiar porque você frequentemente deslizou, portanto, já estava acostumado a fazer isto. Nos seus sonos, sempre passou muito tempo deste lado. Na maioria das vezes não estava verdadeiramente consciente sobre o que estava fazendo, mas parcialmente consciente, embora não fosse capaz de conservar essa recordação quando de sua volta ao mundo físico.

- Céus! Olhe, o que você sabe sobre isto! É um progresso quanto ao andar, não é?

- Bem, eu acho que sim. Vou ensinar aos rapazes quando voltar...

Parou de repente ao perceber que não haveria "volta", o rosto do homem brilhou com compaixão.

- Não - ele disse - "não há volta", mas acho que quando eu lhe mostrar o que está à sua frente, que é tão grandioso e maior do que aquilo que está atrás de nós, você não vai querer voltar, e vai querer, de todo o coração e alma, seguir adiante.

Vou levá-lo de volta, à trincheira onde está sua companhia, pois um de seus amigos vai passar para cá. Não será do mesmo modo como foi com você, pois ele recobrará a consciência quase que imediatamente e quero que você se encarregue dele. Deste modo você aprenderá muito sobre algumas fases dos seus deveres futuros.

E agora - ele continuou - antes de começar realmente seu trabalho, quero imprimir em sua mente que esta guerra foi necessária, pois, de nenhum outro modo, a raça humana poderia ser salva de um destino ameaçador e opressor. Este fato não desculpa aqueles que são responsáveis por tê-la provocado, mas menciono isso porque o grande conflito e o terrível sofrimento fez com que alguns pensassem que os poderes do bem foram abandonados diante dos poderes do mal. Não é assim. Deus reina sobre tudo e assim como o pardal não pode cair sem o Seu conhecimento e vontade, a guerra também não pode ser iniciada sem Seu conhecimento e vontade; mas, como foi dito, isto não desculpa aqueles que a provocaram.

Seu rosto ficou muito sério mas pleno de ternura, e seus olhos tinham uma expressão como se seus pensamentos estivessem muito longe, alcançando os séculos que hão-de vir, antes que o bem que resultaria da grande luta, tenha modelado sua forma no tear do tempo.

- Agora - ele concluiu - vamos andar um pouco mais rápido e você poderá usar aquele seu recém-descoberto poder, o deslizar.

Começou a deslizar enquanto falava e movia-se cada vez mais rápido. Jimmie continuou deslizando ao seu lado, ocasionalmente distraia-se fixando sua mente em alguma outra coisa, enquanto assim procedia percebeu que podia parar quando quisesse. Entendeu, por si só que o andar tornou-se para ele uma segunda natureza e que podia movimentar-se assim e ainda pensar em outra coisa, mas quanto a deslizar, por ser ainda uma experiência nova, ele precisava concentrar-se nisso durante todo o percurso.

O Irmão Maior moveu-se cada vez mais rapidamente e Jimmie seguia-o da melhor maneira possível, embora quando seu companheiro deixou o solo e movimentou-se no ar, Jimmie ficou em dúvida se teria habilidade para seguir um líder tão enérgico. Logo porém, ele foi ficando cada vez mais acostumado com a nova sensação e começou a interessar-se pela paisagem. Percebeu que estava passando por cima de uma parte do país que lhe era familiar e, em outro momento compreendeu que estava se aproximando das trincheiras. Ouviu o detonar dos canhões e viu aviões voando sobre eles, pois ele e seu guia estavam novamente aproximando-se do solo e, no momento seguinte, eles depararam com a borda da trincheira onde ficava seu posto de artilharia.

Lá estava ele, ainda, com um dos homens da companhia e Jimmie sugeriu a seu amigo que seria melhor pularem para dentro da trincheira onde estariam a salvo. Só quando o Irmão Maior sorriu para ele de modo ironicamente diferente, é que ele se lembrou que não existia mais o perigo das balas, pois elas podiam passar através de seus actuais corpos etéricos sem causar desconforto.

O Irmão Maior colocou a mão no braço de Jimmie e apontou para um homem de um pouco mais de 40 anos, vestindo um uniforme de sargento, que estava sentado quieto num pequeno abrigo, fumando um cigarro e olhando uma revista antiga. Enquanto eles o observavam, ele jogou fora o cigarro, colocou a revista de lado, levantando-se devagar e entrando na trincheira. Ele andou despreocupadamente até o posto de artilharia, levantou a cabeça para olhar pela pequena abertura e foi nitidamente perfurado na testa por uma bala. Ficou parado por um momento e depois, quando os músculos perderam sua vitalidade, lentamente relaxaram-se e o corpo também lentamente, escorregou pela parede da trincheira, caindo devagar. Isto foi o que o assustado soldado de plantão presenciou, mas o que Jimmie viu foi o sargento sair calmamente de seu corpo e ficar olhando para o soldado com uma expressão de perplexidade em seu rosto. Jimmie não precisou de nenhum guia para dizer-lhe o que tinha acontecido, e chamou o sargento Strew que olhou para ele e disse devagar:

- Oi, Jimmie, que bom ver você. Quando chegou? Soube que tinha "morrido".

- Oi, amigo - disse Jimmie - acabei de chegar e trouxe um amigo meu.

Ele virou-se para o Irmão Maior e disse:

- Eu o apresentaria a meu amigo, o Sargento Strew, senhor, se soubesse seu nome.

O Sargento Strew pareceu não demonstrar nenhuma surpresa ao ver Jimmie na linha de fogo desta maneira, trazendo um amigo com ele como se a trincheira avançada fosse um lugar de visita. Esta circunstância incomum não pareceu a nenhum deles fora do normal. Geralmente é assim que acontece com aqueles que acabam de "passar" e que não tiveram seus poderes de observação e razão treinados. O sargento sabia que Jimmie estava morto, ou pelo menos foi informado disso e não tinha razões para duvidar do fato. No entanto, quando Jimmie apareceu-lhe vivo, bem e aparentemente à vontade, o sargento aceitou o fato sem hesitar. Porém, se tivesse visto Jimmie antes da bala de precisão ter danificado a ligação entre seus corpos físico e vital o caso teria sido inteiramente diferente.

A maneira respeitosa com que Jimmie se dirigia ao Irmão Maior, também era indicação não só da atmosfera ou aura de dignidade e poder que circundava o Irmão Maior, como mostrava que estas vibrações áuricas não eram impedidas pelo corpo físico, daí serem mil vezes mais potentes do que se isso acontecesse no plano físico. Jimmie nada conhecia sobre vibrações mentais e não tinha a mínima ideia de que a causa de sua atitude estivesse fora dele mesmo, mas estava ciente da atitude de respeito para com o Irmão Maior e agiu de acordo com sua boa educação.

O nome foi dado, eu não posso divulgar, mas vou substituí-lo e direi que o Irmão Maior deu o nome de Campion.

Terminadas as apresentações, o Irmão Maior disse:

- Jimmie, encontre-me dentro de uma hora e traga seu amigo.

- Sim Senhor, mas meu relógio parou e terei que adivinhar a hora. E onde o encontrarei Senhor?

- Mandarei alguém encontrá-lo quando for a hora.

O Irmão Maior aparentemente deu um só passo do fundo até o topo da trincheira, e saiu pela retaguarda. O sargento gritou e saltou para impedi-lo, mas Jimmie segurou-o pelo braço. Strew virou-se para Jimmie.

- Pare-o! Chame-o de volta!

- Não se preocupe com ele - murmurou Jimmie -ouça-me.

- Está bem, tenente, se você quer assim. Mas, Jimmie, como estou contente em revê-lo. Mas, você percebeu como aquele seu amigo subiu a trincheira num só passo? Que homem, não?

- É, ele realmente é.

- Vai ser uma óptima notícia para os rapazes saber que você está bem de novo. Ouvimos que você tinha morrido, três dias atrás. Estou muito contente em saber que foi um erro, mas, onde você esteve todo este tempo?

Jimmie tinha chegado no momento exacto em que havia uma trégua na luta e o Sargento Strew tinha sido a única vítima fatal naquela hora. O sargento estava tão ocupado olhando e conversando com Jimmie que não percebeu as pessoas que rodeavam o seu corpo morto. Jimmie estava aturdido, pois não sabia como contar o sucedido de maneira suave. Nunca havia tido essa missão antes.

- Bem, sargento, a coisa mais curiosa de tudo isto, é que a notícia que lhe deram é a pura verdade.

- O que é verdade?

- Bem, que eu fui morto.

- Você foi atingido na cabeça é este o seu problema.

- Não, não fui. Estou fornecendo as informações verdadeiras. Eu fui morto.

- Jimmie, volte e diga ao médico para consertar sua cabeça. Você não está “regulando bem”. Eu devia ter desconfiado disso, pois você não devia ter trazido aquele lépido, ágil senhor até aqui, uma vez que sabe que é contra qualquer regulamento, mesmo sendo você um tenente, e também não sei como ele saiu, passando por todos os oficiais.

- Bem, é assim, sargento, muitos homens são mortos e nunca chegam a saber o que aconteceu a eles.

- Sim, e alguns acham que estão mortos quando nada aconteceu. Se você tivesse morrido, sabe que seria agora um fantasma, como diacho eu poderia vê-lo e estar falando com você? Não pode ser, Jimmie. Você está tão vivo quanto eu.

- Isto também é verdade, sargento, mas se olhar para trás um momento, vai ver que você está tão morto quanto eu.

Jimmie apontou para o corpo morto que tinha sido colocado sobre umas tábuas no fundo da trincheira, pronto para ser retirado para a retaguarda se as coisas continuassem quietas depois de escurecer. O sargento virou-se e olhou. Olhou por muito tempo e em silêncio. Andou e ficou ao lado do corpo olhando-o cuidadosamente. Falou com o sentinela no posto de artilharia, mas não obteve nenhuma resposta, falou novamente, mais forte, e depois caminhou até ele tocando-o no ombro; tentou sacudi-lo mas, sentindo suas mãos penetrar dentro dele, desistiu de tentar. Virou-se para Jimmie e disse abruptamente:

- Acho que você está certo, Jimmie. Eu morri.

Jimmie olhou para o Sargento Strew e este olhou para Jimmie. Nenhum dos dois sabia o que dizer. A situação era nova e embora Jimmie conseguisse encontrar palavras para confortar um amigo que tivesse perdido algum ente querido, sempre esse dever pareceu-lhe difícil; mas, neste caso, quando era o próprio amigo que tinha morrido e quem procurava confortá-lo também estava morto, a situação tomou-se curiosa. Jimmie sorriu suavemente. O momento era muito sério, mas havia nele um elemento de humor. Isto pareceu-lhe engraçado, pois humor e a vida após a morte tinham sido considerados por ele como ocorrência tão distante quanto os pólos. Até onde ele tinha conhecimento, ninguém jamais havia ligado as duas coisas. O sargento, porém, estava muito sério.

- Então, aconteceu finalmente - ele disse em parte para ele mesmo, em parte para Jimmie. Aconteceu finalmente e não é nem de leve corno pensei que fosse. Diga-me - ele olhou para Jimmie - você já está assim há três dias e já deve estar sentindo-se em casa a esta altura, portanto, onde eles estão?

- Onde estão o quê?

- Bem, céus, embora eu saiba que nós não vamos para lá logo no começo, onde estão todas as coisas que os padres contam sobre o inferno, os diabos e tudo o mais? Aqui é exactamente igual ao lugar que estávamos antes e não vejo muita diferença, excepto que Milvane não me ouviu quando eu falei com ele. Mas o que se faz aqui? Saímos a procurar uma harpa para tocar, vamos lutar, ou o quê? Suponhamos que um grupo de fantasmas alemães apareçem, que vamos fazer?

- Sinceramente não sei - disse Jimmie, para quem a ideia era nova.

- Bem, não sei o que podemos fazer, mas tinha certeza que posso golpear qualquer fantasma alemão envolto em panos brancos que se apresentar.

Jimmie sentiu urna sensação estranha. Jamais havia sido um rapaz profano e sua imprecação pior tinha sido a palavra "droga". Mais forte do que isto, ele raramente proferia, mas agora que o sargento tinha usado algumas palavras impróprias, que talvez, alguns companheiros classificassem de palavrão, isto é autêntico palavrão, Jimmie teve uma sensação quase igual à dor. Era um sentimento misto, não uma dor física mas ao mesmo tempo semelhante a ela; era muito mais que simples repugnância a alguma coisa que antigamente nem teria notado. Lembrou-se do pedido do Irmão Maior e considerou se já havia passado uma hora. Sendo assim, ele devia levar seu amigo à presença atemorizante daquele estranho homem. Suas dúvidas foram esclarecidas pela repentina aparição, surgindo do nada, de uma criança sorridente que se aproximou dele dançando, pronunciando as palavras de uma forma cantarolada, como as crianças geralmente fazem.

- Venha, Jimmie, o Irmão Maior o espera.

Jimmie virou-se para o sargento que estava tentando interferir com um soldado ocupado em remover o cinto de munição do seu corpo abandonado.

- Venha, sargento, o Sr. Campion quer-nos ver.

- Azar de seu amigo. Olhe este idiota tentando tirar todos os meus cartuchos e ele sabe muito bem que eu tenho todo o meu tabaco num dos bolsos e eu sou responsável por aquele cinto. Solte isso, seu tonto!

Esta última imprecação foi dirigida ao soldado a quem o sargento deu um murro com a mão direita que sob condições normais, poderia quase derrubar um touro, mas o soldado não teve a mínima reacção. O sargento ficou imóvel de tanta raiva.

Jimmie teve que parar um minuto para esclarecer a situação em sua própria mente e então com uma risada, ele colocou-se entre o encolerizado sargento e o impassível ladrão, que não era um ladrão mas simplesmente um soldado obedecendo ordens.

- Saia daí, sargento! Você está morto! entende isso? Você está morto! Você não pode machucar aquele rapaz. Venha comigo. Você está morto!

O sargento deu um passo para trás, olhou Jimmie por um momento, com uma expressão de perplexidade em seu rosto, e coçando a cabeça disse pensativamente:

- É verdade, eu tinha esquecido.

- Lógico - Jimmie sorriu para ele - E para que serviria seu tabaco? Você não pode fumar agora.

O sargento parou de repente, com uma sacudidela ficou erecto, olhou para Jimmie abrindo cada vez mais os olhos, horrorizado.

- Aquilo não era o inferno?

Outra vez Jimmie sentiu aquele doloroso sentimento apoderar-se dele quando o sargento pronunciou essas palavras. Novamente duvidou da conveniência de conduzir esse soldado profano, corajoso e honrado que ele sabia ser, diante do Irmão Maior que era como Jimmie tinha qualificado, de algo parecido com um "Pastor perspicaz", ou um "Piloto do Céu". O exército raramente usava a palavra ministro, e Jimmie havia adquirido o vernáculo militar. O que pensaria este amigo de Marjorie se o Sargento Strew se esquecesse e proferisse casualmente um palavrão?

Novamente a criancinha com o rosto sorridente dançou diante de seus olhos e repetiu a mensagem.

- Venha Jimmie, o Irmão Maior precisa de você.

Desta vez Jimmie fez questão de obedecer.

- Venha sargento, são ordens, tenho que levar você comigo.

O sargento foi, pensativo, murmurando alguma coisa sobre tabaco e a inutilidade de um lugar onde não se pode fumar um cigarro reconfortante. Apesar disso, seguiu com um ar preocupado, alçando-se fora da trincheira atrás de Jimmie e olhando nervosamente ao redor como se temesse que ao vê-lo pudesse excitar Fritz e recomeçar o bombardeio.

- Não se preocupe - disse Jimmie, percebendo a apreensão do sargento - Fritz não pode ver você, e se pudesse não poderia machucá-lo. Você está totalmente morto.

- Está certo, eu nunca pensei nisso. Ainda não me acostumei com a ideia de estar morto.

Passou a mão aborrecido por sua testa, depois teve um sobressalto ao sentir o buraco em sua cabeça e retirou sua mão cheia de sangue. Apalpou cuidadosamente o lugar onde os projécteis se haviam instalado.

- Olhe, acho melhor eu ir tratar disto. É um lugar ruim para ser atingido. Eu devia ter, é um milagre eu não...

Calou-se de repente e olhou pensativo para Jimmie. O ferimento evidentemente o impressionara, pois, apesar da evidência, ele ainda não tinha absorvido a ideia de que estava morto. Geralmente leva muito tempo para convencer-nos de uma coisa que sabemos e admitimos prontamente como uma simples afirmação do facto. Apesar do sargento saber que estava morto, ele ainda não se convencera da realidade, nem havia aprendido a coordenar seus pensamentos com o que sabia ser a verdade e o impulso arraigado de "tratar" um ferimento antes de sobrevir complicações, era muito forte para ser abandonado.

Jimmie não sabia, e portanto não podia explicar ao sargento, que o sangue que tinha manchado sua mão era simplesmente o resultado de sua firme e fixa ideia de que deveria haver sangue onde existisse um grande ferimento. Subconscientemente, o sargento compreendia que se estava morto e era um fantasma, então, não podia sangrar. No entanto ele estava sangrando, pois sua mão não estava coberta de sangue? Portanto, parcialmente por métodos conscientes e em parte por métodos subconscientes, chegou um ponto em que duvidava realmente se estava morto ou não. As teorias foram jogadas ao vento. O ferimento era um facto prático e convincente.

- Diga-me, Jimmie, preciso ir tratar disto. Vou ver seu amigo outra hora. Tenho que ir antes que fique pior.

Era, sem dúvida, um ferimento muito feio, não só por onde a bala tinha penetrado na testa, mas muito pior, por onde ela havia saído na parte posterior da cabeça, onde o ferimento era muito maior. Jimmie percebeu a necessidade de "tratá-lo". Mas um pensamento passou por sua mente: onde?

Por mais caridosa e abnegada que fosse a Cruz Vermelha, não havia nenhum hospital que ele conhecesse onde um homem invisível pudesse ser tratado de um ferimento mortal, do qual já estivesse morto.

- Onde você vai, sargento - ele perguntou - onde acha que pode tratar disso? Não entendeu ainda que foi isso que o matou?

- Eles não têm hospitais aqui? - perguntou o sargento – para onde vão os fantasmas quando são feridos?

- Eles não se machucam.

- Duvido! Eu estou machucado, não estou? Se não tratar disto estou sujeito a...

- A quê, sargento? A voltar à vida novamente?

- Raios, Jimmie. Isto dói muito. É incrível que você não chame uns enfermeiros ou uma ambulância ou alguma coisa em vez de ficar aí sorrindo como um tonto. Lógico que eles têm ambulância aqui. Naturalmente eles devem ter.

 

CAPÍTULO III

UM VÔO DE ALMA

 

- Não, aqui não há ambulâncias sargento, mas eu o levarei onde você poderá tratar de seu ferimento.

- Jimmie virou-se para ver quem havia falado e ficou um pouco surpreso ao ver o Irmão Maior de pé, calmo, com o leve indício de um sorriso em seus lábios.

- Por favor, venham comigo, vocês dois.

Ambos seguiram-no. Jamais ocorrera a eles questionar aquela voz amável que, apesar de toda a gentileza, parecia encerrar uma nota decisiva e plena de autoridade.

- Pegue a mão dele, Jimmie - disse o Irmão Maior, ao mesmo tempo que segurava o sargento pelo outro braço. Jimmie obedeceu e ficou impressionado ao ver como estava viajando depressa. Em poucos minutos eles "desceram", como ele depois descreveu, e sentiu que estavam em um campo plano, a algumas centenas de metros de uma enorme construção em estilo grego com enormes colunas simétricas, que terminavam em capitéis coríntios, e com uma iridiscência ou brilho estranho cercando toda a estrutura. Jimmie não sabia, a princípio, se realmente estava vendo isto ou não. Na verdade, ele não via isto de uma forma contínua e o Sargento Strew, que parecia estar acordando de um sonho, aparentemente não viu mesmo nada.

De mãos dadas atravessaram o gramado e subiram por uma série de degraus que circundavam a construção e que abriam caminho por entre o que pareciam fileiras intermináveis de colunas, até que o Irmão Maior abriu uma porta e os conduziu para dentro de uma sala, seguindo-os.

Tendo fechado a porta, virou-se para o Sargento Strew que estava aparentemente desmaiando devido a perda de sangue.

- Agora, sargento, deve desculpar-me por tê-lo feito esperar tanto antes de tratar do seu ferimento.

Ele abriu um pequeno armário e retirou de uma das prateleiras um minúsculo frasco cheio de uma substância escura, quase da mesma consistência da vaselina.

- Agora, sargento, deste lado do véu, nós podemos obter resultados com maior rapidez do que do lado que você acabou de sair, e vai ver que se fizer como eu peço, seu ferimento estará totalmente curado sem deixar nenhuma cicatriz.

Colocou-se em frente do sargento, lambuzou seu dedo com um pouco da substância escura e disse:

- Por favor, sargento, fique bem imóvel e concentre sua mente na forma que sua testa era antes de ser ferida. Pense assim e imagine que este ferimento nunca aconteceu.

Ele tocou a testa do sargento levemente com o dedo que ele havia lambuzado com a substância escura. O sargento cerrou seus olhos, contorceu seu rosto em uma expressão que para ele, era a forma correcta de quem estivesse em concentração.

O Irmão Maior retirou sua mão e, para surpresa de Jimmie, a testa do sargento estava tão limpa e lisa quanto a de uma criancinha. Lisa, isto é, excepto pelas rugas produzidas por suas fantásticas contorções faciais ao tentar obedecer o comando do Irmão Maior de "concentrar-se".

- Bem! Bem! - disse Jimmie.

O Sargento Strew abriu seus olhos.

- Seu ferimento desapareceu como se nunca tivesse existido.

- É mesmo? - Ele tocou sua testa com cuidado e de modo inquiridor.

- Doutor, eu tenho que cumprimentá-lo pelo trabalho. Faria uma fortuna nos Estados Unidos. Você deve ser um mágico.

O Irmão Maior sorriu.

- Você é que fez isto, meu amigo. Foi sua imaginação e sua força de vontade, não minha habilidade que o curou.

O Sargento Strew não pareceu convencido e, furtivamente, tocou sua testa como se em dúvida quanto a alguma mudança forjada por sua própria imaginação, mas o ferimento estava cicatrizado e ele deu um suspiro de alívio.

- Ufa! - ele disse - se eu tivesse sabido como fazer isto antes! - Virou-se para o Irmão Maior - você realmente disse que eu me curei sozinho?

- Exactamente. Curou-se e aquilo que eu passei em sua testa foi simplesmente para ajudá-lo a concentrar-se. Se um dos seus braços tivesse sido arrancado e você tivesse chegado aqui com um braço só poderia tê-lo readquirido, tão facilmente como você foi capaz de curar este ferimento. A matéria, deste lado do véu é maravilhosamente sensível ao poder da vontade, e a tarefa à qual quero introduzi-lo imediatamente é de ir ao encontro dos seus companheiros quando morrem, acalmá-los, mostrando-lhes como curar seus ferimentos e também como retirá-los das linhas de batalha.

Para aqueles que morrem, a batalha está terminada e é seu dever, assim como seu privilégio, ajudar não mais lutando, mas fazendo com que os outros parem de lutar e comecem a mudar seus pensamentos do plano terreno em direcção ao grande futuro e às tarefas e deveres que esta mudança encerra.

- Mas, suponhamos que o inimigo faça um "ataque"? O que devo fazer? Como posso ajudar a lutar?

- Simplesmente recusando-se a lutar. Você não está mais no plano físico onde podia ser compelido a lutar. Os alemães não podem machucá-lo, mesmo que façam um "ataque" e o cerquem. Tudo o que tem a fazer é cumprir ordens; ignore os alemães, a menos que saiba falar alemão. Neste caso é seu dever ajudá-los a parar de lutar e curar seus ferimentos, do mesmo modo que é seu dever ajudar seus companheiros.

E lembre-se que enquanto estiver fazendo este trabalho, estará executando o trabalho do Mestre, e o poder e a força do Mestre estão com você de maneira que nada pode feri-lo. No entanto, se desobedecer estas ordens e deixar sua raiva aparecer tentando machucar alguém - somente assim poderá ser ferido. Em resumo - obedeça às ordens e estará perfeitamente seguro mesmo que seu trabalho o leve para o centro do exército alemão. Desobedeça ou deixe suas paixões levarem-no para o ódio e a raiva, e perderá a segurança, mesmo que esteja sozinho em uma ilha no Oceano Pacífico. Compreendeu?

O Irmão Maior endireitou-se como se fosse um soldado em posição de "sentido". O sargento ficou muito impressionado e bateu seus saltos com uma saudação, dizendo:

- Suas ordens serão cumpridas, senhor.

- Um momento, sargento.

O Irmão Maior ficou parado por um momento, aparentemente pensando. Ele estava nesta atitude há cerca de um minuto quando a porta se abriu e um homem vestindo um uniforme de soldado canadense entrou.

- O senhor chamou?

- Sim. Por favor, vá com o Sargento Strew e mostre a ele como fazemos nosso trabalho. Você não vai ser chamado para o serviço activo logo, sargento.

O Irmão Maior continuou, dirigindo-se ao nosso amigo.

- Mas os alemães estão para começar outro ataque e muitos, de ambos os lados morrerão; e precisaremos de todos os nossos auxiliares e muitos mais. Tenho certeza que você vai fazer o possível para ajudá-los, influenciando-os a parar de lutar e a mudar sua atenção para outras coisas, agora que eles estão deste lado do véu.

O Sargento Strew e o canadense fizeram continência e saíram.

O que aconteceu com o sargento e a maneira como foi introduzido ao trabalho do grande grupo de auxiliares invisíveis que se empenham com toda força para evitar um grande desastre para o mundo, Jimmie soube depois. Sentia-se repleto de aventuras e de muitas coisas terríveis, mas também algumas coisas quase cómicas. Mas isto não faz parte desta narrativa.

O Irmão Maior ficou por um momento absorto em pensamentos depois da partida do Sargento Strew, e Jimmie ficou a observá-lo, esperando-o falar. Depois de alguns minutos Jimmie quebrou o silêncio.

- O senhor disse que eu tinha certos deveres, também?

- Sim. Mas os seus são diferentes daqueles do sargento. Precisa aprender o máximo possível, porque o seu campo de acção não será aqui. Você vai voltar.

- Voltar?

- Sim. Você não foi morto, só ficou atordoado e quando chegar o momento certo você voltará para trabalhar novamente no seu próprio corpo no plano físico. Lá, será seu grande e elevado privilégio contar, dentro de suas possibilidades, as coisas maravilhosas que serão mostradas e ensinadas a você, aqui.

- Mas, se eu não estou morto, então isto tudo não é um sonho? Marjorie disse que eu estava morto. Será que eu só imaginei que vi Marjorie?

- Não. Você realmente viu Marjorie e falou com ela. Além disso, você está aqui agora, porque não é necessário morrer para vir a este lugar. Marjorie estava equivocada e é muito natural que assim tenha acontecido. Na realidade, por algum tempo não tínhamos a certeza se seria possível reintegrar seu corpo etérico com suficiente rapidez. Mas seu trabalho é necessário na terra. Você conquistou essa oportunidade em suas vidas anteriores e, como há muita necessidade, foi-lhe dada ajuda especial. Nem você nem Marjorie pararam para reflectir que você não tem nenhum ferimento.

- É verdade - Jimmie disse - pensando bem, eu não tenho nenhum ferimento. Não havia parado para pensar nisso antes. Mas, eu me lembro de ter visto muitos homens mortos nos campos de batalha sem terem qualquer ferimento.

- Isso é verdade. Eles morreram pelo choque da explosão e isto foi quase o que poderia tê-lo matado, isto é, expulsando seu corpo vital do seu corpo físico, quase a ponto de romper o cordão prateado.

Mas, pelo fato de você ser necessário, é que recebeu uma ajuda extra, senão estaria realmente e absolutamente morto, como você chamaria isto. Sem dúvida, estaria deste lado do véu sem nenhuma chance de voltar. Mas, porque em suas vidas passadas iniciou-se no Caminho, fez o voto de servir e pelo seu trabalho ganhou a oportunidade de mais serviço, aconteceu que, quando seu corpo etérico saiu, com a explosão da granada, as partículas de seu corpo vital foram preservadas de desagregação; e quando chegar o momento de você regressar ao corpo físico, que está ainda estendido em um hospital na linha de batalha, você será ajudado a reter na memória tudo o que você viu e ouviu aqui, de modo que poderá trabalhar para obter melhores resultados. Em seus sonhos, você tem fisicamente visto e falado com Marjorie, e em muitas dessas viagens "deslizou" com ela. Mas, desta vez foi bem diferente, e não é milagre que ela se tivesse enganado.

- Mas eu nunca sonhei com ela, senhor, este tem sido um dos maiores ressentimentos de minha vida.

- Sim! Embora nunca tenha sonhado com ela, vocês encontraram-se muitas vezes e fizeram muitas viagens juntos, pois durante o sono geralmente ficamos longe de nossos corpos no País do Sonho, embora poucos sejam capazes de lembrar de suas visitas a esta terra dos mortos vivos e, aqueles que estão começando a fazê-lo, levam, frequentemente, memórias distorcidas e confusas. Uma das coisas que eu espero que aprenda logo a fazer quando voltar, é levar sua consciência com você.

- Quer dizer que isso pode ser feito?

- Sim, sem dúvida. É muito mais fácil do que pode parecer e especialmente para almas que estão bem evoluídas. Na verdade, é uma constante indagação minha por que mais pessoas não são capazes de fazê-lo. Você ganhou o privilégio de fazer isto durante suas duas ou três vidas anteriores, e não será uma tarefa muito difícil adquirir essa habilidade.

- Minhas duas ou três vidas? O que quer dizer com isso? Quer dizer que eu já vivi antes?

- Exactamente.

- Onde?

- Na terra. E sua última vida foi passada não muito longe de onde estamos agora, isto é, foi no sul da Europa.

- Mas, eu sempre achei que quando morremos, morremos, e que ou vamos para o céu ou para - o outro lugar.

- Não! O esquema da evolução humana é muito maior e mais maravilhoso do que isto. E porque é muito mais complexo, devido à grande quantidade de trabalho a ser feito e ao facto de você poder ser muito útil, é que será ajudado a voltar. Mas, primeiro, quero que faça uma pequena viagem comigo.

Ele fez um sinal para Jimmie segui-lo, que segurou sua mão em sinal de obediência. Empreenderam uma rápida viagem, durante a qual Jimmie só pôde olhar de relance as partes da terra sobre as quais sobrevoaram e, antes que um minuto se passasse, eles encontravam-se em uma sala pouco mobilada, onde uma mulher estava sentada, costurando perto de uma mesa pequena, enquanto duas crianças estavam brincando no chão, ao seu lado. Ao costurar, lágrimas rolaram lentamente por sua face, ela não emitia nenhum som, só ocasionalmente olhava para a mesa onde estava uma carta aberta.

O Irmão Maior permaneceu de pé, quieto, em um canto. Sua face grave mostrava a compaixão que sentia, enquanto Jimmie encaminhou-se até a mesa e examinou a carta. Era um anúncio seco, formal do governo, informando que Henry L. E. tinha sido mortalmente ferido em combate.

Instintivamente ele recuou em respeito à tão grande dor. Ao fazer isto, um homem em uniforme entrou pela porta fechada e ficou lá, suas mãos esticadas em direcção à mulher, que não lhe deu nenhuma atenção. Em sua túnica, exactamente sobre o coração, havia um pequeno buraco redondo, e a túnica estava manchada de sangue.

- Oh, Emma - o recém-chegado quebrou o silêncio - Emma! - ele gritou, com um soluço em sua voz.

A mulher não respondeu, mas pareceu um pouco agitada e ergueu sua cabeça como se tivesse escutado um som aguardado com ansiedade. A criança mais nova engatinhou em direcção ao homem de uniforme, balbuciando algo parecido com boas-vindas que, com alguns meses mais de prática, poderia converter-se no familiar "Papai".

Com um soluço a mulher pegou a criança.

- Não, não, querido! Papai ainda não voltou. Ele ainda não voltou.

- O bebé pode vê-lo - disse o Irmão Maior para Jimmie - mas a mulher não, e talvez até seja melhor. Quando ela for dormir hoje à noite - ele disse virando-se para o homem de uniforme e tocando-o no braço - quando ela for dormir hoje à noite, ela deixará seu corpo e ficará com você até acordar de manhã. Você vai lembrar-se, mas ela não. Todas as noites você será capaz de se encontrar com ela e de falar-lhe e assim vai poder ajudá-la a carregar esta provação. Por enquanto, lembre-se que sua separação é temporária, que irá vê-la e estar com ela e com as crianças todas as noites quando eles forem dormir. Afinal, sinta que sua ausência é temporária. Ela tem um fardo muito mais pesado para carregar.

O homem de uniforme abaixou suas mãos.

- Obrigado, senhor, tirou um grande peso de minha consciência.

O Irmão Maior dirigiu-se a Jimmie e juntos saíram no agora já familiar deslizamento, passando pela parede como se ela não existisse.

Do lado de fora, eles estavam nos arredores de uma grande cidade e o Irmão Maior escolheu uma rua lateral, sombreada e passou por ela devagar, quase andando. Não havia muitas pessoas na rua, e aqueles que encontravam não lhes davam atenção, evidentemente porque não os viam. No início, era difícil para Jimmie, desviar-se dos pedestres que passavam naturalmente pela calçada. O Irmão Maior, porém, não prestava maior atenção às pessoas, nem elas nele, e caminhava despreocupadamente sem se importar, como se elas fossem meras sombras. Jimmie observou-o, depois tentou e descobriu, para seu alívio, que não lhe causava nenhum inconveniente passar através de uma pessoa na rua e que esse era o único procedimento razoável a seguir.

- Mostrei-lhe um pouco do sofrimento causado pela guerra - disse o Irmão Maior lentamente - não que você não tenha conhecimento disso, mas simplesmente para fazê-lo perceber que a maior parte da agonia causada pelo conflito surge da ideia de que a morte significa uma separação completa e, provavelmente, permanente. Apesar de muitas pessoas dizerem, se fossem inqueridas, que acreditam firmemente em uma vida futura, o facto é que poucas crêem nisso ao ponto de aceitá-la totalmente.

Podem ver a morte e pensam que a compreendem, mas quanto à vida no além, ficam muito inseguras. Se pudessem saber, não como teoria mas como um facto, que são espíritos, filhos do grande Pai no Céu, e como tais não podem mais morrer, assim como Ele não pode, e se ao menos pudessem perceber que esta vida não é a única na terra, mas que a humanidade vive muitas outras vezes em corpos e ambiente cada vez mais aprimorados, e também que seu progresso é sempre para a frente e para o alto, trabalhando com a Grande Lei, isto poderia ser muito mais acelerado e elas evitariam muito sofrimento. Se pudessem ao menos perceber que elas próprias é que são responsáveis por seus problemas e que os infortúnios que carregam não advêm da vontade de divindades caprichosas, mas do resultado de sua própria desobediência à Sua Vontade (como é mostrado através de Suas grandes e justas leis) tanto na sua vida presente quanto nas passadas. Mais, na medida em que obedecerem Sua lei moral e praticarem a conduta que Cristo o Grande Mestre, estabeleceu, evitarão o sofrimento e estarão prontas para serem auxiliares no grande trabalho de elevar seus companheiros.

Ele parou de falar, sua face brilhando com luz, e quando Jimmie percebeu um halo de luz ou nuvem de iridescente beleza e de cores levemente faiscantes envolvendo-o, surgiu em sua mente um antigo verso que ele havia ouvido quando menino:

Como é resplandecente o brilho desses espíritos gloriosos.

- Já está quase na hora de você voltar - continuou o Irmão Maior - e eu não posso falar e permanecer muito mais aqui, portanto, vou manter minha promessa e deixá-lo ficar um pouco com Marjorie. Mas antes de nos separarmos quero deixar gravado que quando estiver bem recuperado e for capaz de andar, quero que me vá ver a Paris.

Mencionou-se uma rua e um número.

- Mas eu pensei... eu pensei que você tivesse... eu pensei que você vivesse aqui.

O Irmão Maior riu.

- Não na verdade. Ainda estou na carne, e quando você estiver bem, encontrar-nos-emos em Paris e isto será uma das provas para você de que tudo isto não é um sonho mas uma realidade.

Começou a andar mais rapidamente e Jimmie, seguindo-o, em obediência a um gesto de comando, logo encontrou-se na mesma suave campina onde havia primeiro recuperado sua consciência.

- Marjorie logo estará aqui e eu o deixarei com ela que lhe explicará algumas coisas, mas você não deve considerar este nosso encontro como o último, nem como a única introdução à Terra dos Mortos que Vivem. Sua iniciação às coisas espirituais veio de uma maneira diferente da usual, mas isto não é um presente, pois você o mereceu, e será seu dever trabalhar dez vezes mais de agora em diante.

- Ele vai fazer isto, não é verdade, Jimmie?

Marjorie, que apareceu sem ser notada, estava parada, sorrindo, em frente deles. Jimmie pegou suas mãos e sorriu também.

- Sim, certamente, eu o farei, senhor.

- Então, até logo, por enquanto.

Jimmie olhou para Marjorie preparando-se para dizer adeus ao Irmão Maior mas, para sua surpresa, eles estavam sozinhos.

- Soube que você vai voltar, e eu estou muito feliz porque isto quer dizer que será capaz de trabalhar simultaneamente nos dois lados do véu. Oh, Jimmie, como invejo suas chances de trabalhar!

O resto da conversa de Jimmie com Marjorie, embora de muito interesse para ambos, não diz respeito à nossa história, e seria um abuso dos privilégios de nossa clarividência reproduzi-la. Jimmie falou de sua decepção por não terem sido mostradas as grandes visões que lhe haviam prometido, nem dada nenhuma instrução sobre o "trabalho" que deveria fazer.

Marjorie tranquilizou-o, e tão absoluta era sua fé na sabedoria do Irmão Maior e tão positivas suas afirmações, que as dúvidas de Jimmie desapareceram.

Seus olhos estavam ficando cada vez mais pesados e uma sonolência incontrolável apoderou-se dele, pela qual tentou desculpar-se, mas Marjorie sorriu-lhe. Sua última lembrança foi vê-la ali, com um brilho ténue circundando-a e um sorriso em sua face, disse-lhe:

- Você está regressando!

Então, a escuridão pareceu cobrir por completo a Terra dos Mortos que Vivem.

 

CAPÍTULO IV

DE VOLTA À TERRA UMA BONITA ENFERMEIRA

Urna sensação de queda; grandes massas escuras em redemoinhos, sentidas, não vistas; a impressão de estar indo disparado no espaço a uma velocidade vertiginosa, sozinho, a cabeça primeiro para baixo, quase impossível controlar o incrível mergulho, no entanto, não era desconfortável nem particularmente inquietante. Havia, sim, a curiosidade para conhecer o resultado desta excursão sem guia e precipitada, urna leve consciência de diminuição da escuridão e da velocidade, um aumento gradual de luminosidade crepuscular sem qualquer origem específica e nada revelando em particular. Eons de tempo passavam; urna aparição final do sol visto debilmente através das nuvens e da neblina, e, pouco a pou­co, a visão que se vai clareando. Muito tempo se passou e as nuvens tornaram-se mais leves e mais rosadas; urna lenta mudança final do sol na suave luz do alvorecer sobre um globo giratório in­candescente e as nuvens rosadas transformaram-se em um tecto e paredes brancas. Nada mais era visível. Urna sombra projectou-se sobre a parede e dentro do raio de visão moveu-se o que pareceu ser a cabeça de urna jovem deusa que usava o queque do uniforme da Cruz Vermelha.

Parecia-se um pouco com Marjorie... Quem era Marjorie? Fez um esforço para lembrar-se. O nome aflorou com facilidade, Marjorie... Marjorie... quem era Marjorie?

Quem era ele? Jim, Jimmie ... Quem era Jimmie? De onde veio? Um nome familiar! Eles chamavam-no Jimmie. Eles? Quem? Quem eram "eles"? Marjorie chamou-o Jimmie. Quem era aquela menina com o queque da Cruz Vermelha, que se assemelhava um pouco a Marjorie? Ela havia parado e estava olhando para ele. Não, ela não era Marjorie. Marjorie era muito mais bonita e Marjorie tinha um brilho suave ao seu redor. Marjorie parecia estar muito mais viva que esta jovem e Marjorie brilhava, com luz própria. Esta moça não brilhava. Provavelmente não era sua culpa. Naturalmente, poucas pessoas podiam brilhar como Marjorie, ele sorriu.

Como foi mesmo que Marjorie havia chamado aquilo? Oh, sim, uma aura - aura.

A moça com o queque da Cruz Vermelha estava sorrindo para ele agora, mas ela não brilhava como Marjorie. Mas, mesmo assim, ela tinha um sorriso doce. Parecia uma boa moça. Ele sabia. Mas ela devia brilhar. Ele ia falar com ela.

Uma enfermeira da Cruz Vermelha, ao passar por seus pacientes em seu turno, viu aquele soldado que não estava ferido, que permanecia inconsciente já há muitos dias, vítima de comoção pela explosão de uma granada e que não tinham conseguido acordar. Ao olhar para ele, ela ficou surpresa e alegre ao ver que seus olhos estavam abertos e que ele mostrava sinais de estar consciente. Ele olhava para ela e seus lábios começaram a mexer-se levemente. Ela aproximou-se, abaixou a cabeça até que seus ouvidos estivesse próximos aos lábios dele. Só assim conseguiu ouvir suas palavras, muito fracas.

- Você não está brilhando. Onde está sua aura?

A embaraçada enfermeira afagou suavemente sua testa, sentindo uma profunda pena por esta desamparada ruína humana, vítima da guerra. Os lábios dele movimentam-se novamente e novamente ela se debruçou para ouvi-lo.

- Desculpe-me. Foi um engano. Você a tem, sim.

- Tente dormir, agora, você está muito melhor.

Ela colocou sua mão sobre a cabeça dele por alguns momentos e, depois, como sua respiração normal demonstrasse que ele tinha seguido suas instruções, continuou sua ronda. Mais tarde, ao fazer seu relatório para a enfermeira-chefe, assinalou que o número 32 havia recuperado a consciência, mas estava, aparentemente, um pouco "fora", uma vez que havia feito perguntas sem nexo, como o por quê dela não brilhar e onde estava a sua aura.

- O que é uma “aura”? - ela perguntou à enfermeira-chefe.

- Parece que já ouvi esta palavra em algum lugar.

- Eu não sei, filha. Acho que tal coisa não existe. Ele só está fora de si.

Jimmie acordou de seu sono algumas horas mais tarde com sua mente bastante clara quanto a impressões exteriores, mas muito confuso quanto a outras coisas. Ele lembrou-se de sua experiência com o Sargento Strew , com o Irmão Maior e com Marjorie. Eram entidades vivas e distintas em sua mente e podia recordar quase todas as palavras, especialmente as de Marjorie, mas como aconteceu dele estar aqui e onde era "aqui"? Lá não havia hospitais, no sentido próprio da palavra, mas ele estava em um hospital. Além disso, a enfermeira andava, não deslizava, e ela não tinha aura, embora ele se lembrasse vagamente de que quando ela se debruçou sobre ele, no momento em que acordou pela primeira vez, ela tinha tocado sua testa tão delicadamente que lhe parecia que ela brilhava - sim, ele lembrava-se que, de repente, ela ficou envolvida por uma nuvem púrpura clara. Ele lhe havia dito algo naquele momento, mas, agora, não conseguia lembrar-se o que foi. Não se importava. Era suficiente estar deitado aqui, quieto, não pensar em nada -pelo menos em nada mais do que o necessário. Este lugar podia ou não, ser o céu mas com certeza era muito confortável.

A enfermeira parou novamente ao seu lado. Ele sorriu-lhe, sentindo-se confortável e totalmente satisfeito por poder fazer mais do que sorrir. Mas ela era uma jovem competente e não aprovava o facto de enfermeiras sorrirem para pacientes ou pacientes sorrirem para enfermeiras. Ela queria saber como ele se sentia, qual sua temperatura, e levantá-lo um pouco, de maneira bem delicada. Ele não se importou com essas atenções. Quem poderia ficar aborrecido com a atenção de uma deusa? Agora que ele estava em posição melhor para falar, ia descobrir onde estava. Iria agir diplomaticamente, de maneira que ela não percebesse o que ele estava tentando descobrir. Falou-lhe e ela ficou contente ao ouvir sua voz muito mais forte.

- Por que você não desliza?

Coitado! Sua voz estava mais forte mas evidentemente sua mente continuava divagando. Mas, muitas vezes, pode-se conseguir bons resultados levando estes casos na brincadeira. Então, ela respondeu:

- Você não sabe que não nos é permitido dançar aqui e, além disso, ninguém desliza actualmente. As únicas danças que temos são a valsa e dois ou três outros passos, mas deslizar está fora da moda.

Ele olhou-a atónito. Talvez não fosse o céu. Talvez fosse... não... não podia ser. Seu rosto era muito suave e ao mesmo tempo saudável.

- Diga-me... fale...

Ela debruçou-se, plena de compaixão à visão daquele homem tão forte, deitado ali desamparado, sem esperança, aguardando alguma revelação piedosa que o orientasse na conturbação de sua mente.

- Onde estou?

A mudança repentina de sentimento foi demais para ela, que riu francamente. Quando parou de rir, o suficiente para falar, respondeu sua pergunta.

- Você está no Hospital Americano de Paris, França, e é evidente que está muito melhor, isto é, tudo menos sua gramática.

Outra vez, ao observá-la, ele viu aquela onda de cor envolvendo-a com um esplendor de luz púrpura e ele não precisou de palavras para compreender que embora ela não deslizasse nem soubesse o que era aura, mesmo assim era uma verdadeira irmã; era um daqueles seres compassivos que dedicam sua vida ajudando os outros, como o Mestre o faz.

Sabia, embora não atinasse como o sabia, que esse brilho vibrante, esse suave resplendor não pode ser imitado por nenhuma arte, nem por talento, conhecimento ou poder, por maior que seja. Nada pode reproduzi-lo a não ser a pureza, a bondade, o amor e o serviço. Assim, contentou-se por um momento, recostou-se em seu travesseiro e dentro de alguns momentos estava adormecido.

Só acordou no dia seguinte, desta vez com a posse total de seus sentidos e memória, e quando a enfermeira de rosto bondoso e da linda aura fez sua ronda, ela deparou-se com um olhar de total reconhecimento, o que a fez reparar, de imediato, que a mente de Jimmie estava totalmente restabelecida.

- Bom dia - ela disse sorrindo - como vai meu paciente com comoção por explosão, esta manhã? Ainda sofrendo de distúrbio gramatical?

Jimmie ostentou um largo sorriso.

- O que eu disse a você ontem?

- Oh, nada de mais. Você estava naturalmente um pouco transtornado, divagava, e pronunciou algumas coisas estranhas. Perguntou por que eu não dançava, e onde estava minha aura, e por que eu não brilhava. Aliás o que é uma aura? Existe isso, ou você inventou essa palavra?

- Acho que não posso explicar exactamente o que é uma aura. Ouvi a palavra e suponho que sei o que ela significa. Tentarei transmitir-lhe isso.

Três dias mais tarde, Jimmie pôde sair para um passeio. Sentia-se praticamente bem e com muita fome, mas teve que prometer que, se lhe fosse permitido sair, não poderia comprar nada para comer.

- Não sei se posso confiar em você ou não - o médico havia dito - acho melhor a Sra. Louise ir com você.

- Também acho - disse Jimmie pensativamente - Seria realmente muito melhor.

A Sra. Louise não pareceu contrariada por essa pequena saída quando o médico perguntou se ela poderia levar seu paciente para um passeio. Na verdade, ficou muito orgulhosa em poder acompanhar aquele jovem e alto tenente em seu uniforme recém limpo e passado, do qual qualquer vestígio da lama da trincheira havia sido removido na lavandaria do hospital.

- Para onde vamos? - ela perguntou ao saírem dos portões do hospital.

- Você sabe onde fica a Rue de la Ex?

- Não, mas podemos perguntar.

Perguntaram. Ele perguntou no melhor francês de trincheira e ela perguntou um pouco hesitante em seu encantador sotaque e com um fascinante levantar de sobrancelhas, mas nenhum dos dois pode entender as respostas que obtiveram. Elas estavam envolvidas por tal torrente de palavras e gestos, que não lhes ajudaram em nada.

- Eu sei qual é a dificuldade - disse Jimmie depois que o oitavo ou nono francês os havia deixado numa confusão de gestos e levantar de ombros.

- Oh, o que será? Estou humilhada com o meu francês.

- É sua culpa.

- Minha culpa? - suas sobrancelhas levantaram-se em um arco encantador - Por quê?

- Bem esses parisienses olham para você, ficam tão entusiasmados que não podem falar direito. Não os culpo, também.

- Oh, gostei disso! Sou tão feia assim?

- Não disse que você era feia. Disse que eles olham para você e ficam nervosos.

- Bem isto é o mesmo que dizer que sou feia. Obrigada, tenente James Westman pela sua agradável opinião.

- Fingida.

- O que você quer dizer com “fingida”?

Jimmie percebeu seu erro e ficou com medo. Não havia percebido o quanto a boa opinião dela significava para ele e agora que ele estava em perigo, ficou realmente nervoso.

- Sabe, Sra. Louise, o que quero dizer. Se ainda não sabe vou lhe dizer. O que quero dizer é exactamente isto... Ouça! não vai ficar brava se eu lhe disser?

- Já estou brava agora - bastante brava. Você disse que sou tão feia que ninguém olha para mim sem ficar nervoso.

- Não, eu não disse isto, e eu vou dizer-lhe agora, não importa se você vai ficar brava ou não. O que eu quero dizer é que você é tão bonita que quando alguém olha para você, fica naturalmente...

- Naturalmente, o quê?

- Naturalmente perde a cabeça. É isto. É exactamente isto que acontece comigo todas as vezes que olho para você. Agora fique brava, se quiser.

Silêncio.

- Você está zangada?

Mais silêncio.

- Está?

Ela desviou a cabeça, mas ao inclinar-se para ouvir o que ela dizia, pareceu perceber as palavras:

- Não muito.

Era da natureza de Jimmie deixar-se levar pelo entusiasmo quando estava muito interessado em um assunto, e agora acontecia exactamente isso.

- Vou contar-lhe mais, pode ficar brava, se quiser, o quanto quiser. Sei que não tenho o direito de dizer, mas eu acho isso e digo que você é a moça mais bonita, mais suave, mais simpática e mais querida pessoa na... na...

Antes que a memória de Jimmie projectasse a figura daquela outra jovem que dançava, flutuava, deslizava, brilhava, a dourada Marjorie, a Marjorie de voz suave, ele hesitou ao falar. Ele estaria certo? indagou-se. Sua consciência o punia um pouco. Era certo sentir amor por duas mulheres? Ele hesitou.

- Na França - concluiu vacilante.

Louise percebeu a hesitação em sua voz. Não sabia se estava apaixonada por esse homem ou não. Não tentara analisar seus sentimentos mas achava que ia receber uma declaração e ficou desapontada. A hesitação em sua voz foi algo que estava em desacordo com suas expressões iniciais tão inflamadas e elogiosas e, embora não entendesse completamente, só podia encontrar uma explicação, a mais comum. Com certeza ele tinha uma noiva em seu país. Suavemente ela libertou-se de sua mão e virando-se em sua direcção disse:

- Eu... eu... acho que é melhor ir agora Sr. Westman.

Havia apenas um leve sinal de embaraço em sua voz.

- Louise! Oh Louise! Não pense isso de mim. Sei o que está pensando, mas é tudo um erro, querida. Você não vai me escutar?

Ela vacilou, intrigada pelo fato dele querer namorá-la tendo uma noiva na América, mas, ao mesmo tempo, não queria colocar um ponto final em tudo antes de estar segura de que não estava equivocada.

- Pois bem, Sr. Westman, o que você quer dizer?

- Que você é a mais linda moça do mundo.

- Da França, você quer dizer?

- Não, do mundo todo.

- Você tem certeza? Você não quer dizer da França?

- Não! Tenho certeza e reafirmo: de qualquer lugar.

- E aquela moça em seu país?

- Não há nenhuma!

Ela olhou-o pensativamente à princípio, depois com um toque de ironia no seu olhar. Ele percebeu isto e compreendeu que a sua situação era desesperadora. Como um raio de luz, isto o fez perceber que estava apaixonado por esta moça e que não poderia perdê-la. Ele não podia perdê-la.

- Então, por que você gaguejou?

- Vou explicar e você vai compreender tudo. Por favor, escute-me.

- Estou escutando agora, mas não estou ouvindo muito bem.

- Eu posso explicar tudo enquanto voltamos.

- Oh, eu não sei, Sr. Westman, eu não tenho certeza se quero perder tempo com coisas que precisam ser “explicadas”. Acho que já está agora suficientemente forte para cuidar de si próprio, e como tenho uma incumbência que quero fazer, vou deixá-lo aqui pois preciso apressar-me.

Ela deixou-o apesar de seus protestos, e desceu uma rua lateral enquanto Jimmie parado na esquina, olhava-a na esperança de que ela pudesse arrepender-se e olhá-lo novamente. Mas esperou em vão.

Com tristeza, retomou ao hospital. Não havia nenhum outro lugar para ir. Não tinha disposição para visitar um clube ou ir à A.C.M. - Associação Cristã de Moços, pois estava muito magoado e triste para misturar-se com um grupo de soldados. Só queria ficar sozinho e pensar em alguma coisa que dizer a ela para que mudasse seu modo de pensar. De repente, as palavras do Irmão Maior vieram-lhe à mente.

“Sua introdução às coisas espirituais verificou-se de maneira incomum, mas isto não foi um presente, pois você conquistou esse mérito e será seu dever trabalhar dez vezes mais de agora em diante. “

Ele viu então que havia esquecido totalmente sua promessa e o grande trabalho, qualquer que este fosse, estava contido na palavra “dever”. Encontrava-se, de alguma maneira, indiferente e descuidado em relação às experiências maravilhosas, como se houvessem sido um sonho. Havia saído para procurar o endereço dado pelo Irmão Maior, mas, tranquilamente, havia deixado tudo para tentar namorar uma jovem!

Oh, mas era uma moça tão bonita! Assim ele se justificou. Isto era, sem dúvida, uma complicação. Estava amando duas moças, ambas lindas e doces, encantadoras, mas uma na terra e uma no... no..., vamos dizer no Paraíso. Só podia casar-se com uma. Será que isto ofenderia a outra? A Louise acreditaria nele quando ele lhe falasse sobre seu outro amor, será que ela teria ciúmes? Supunha, pelo menos esperava, não lhe ser indiferente, mas uma história como essa seria difícil fazê-la acreditar.

Oh! um pensamento pegou-o de surpresa. O Irmão Maior poderia resolver este problema, se é que esse ser existe realmente. Não estava certo se acreditava em sua memória ou não. Se ele próprio tinha dúvidas, como esperar que Louise acreditasse em suas palavras? Existia um Irmão Maior ou a sua grande aventura tinha sido outra nuvem de matéria da qual os sonhos são feitos? Tolo! Havia provas - provas concretas - se ao menos ele pudesse encontrá-las - provas que convenceriam até Louise, não importa quão céptica ela fosse. Eis aí! Ele testaria seu sonho e provaria o que o próprio Irmão Maior havia sugerido, e ao fazer isto estaria provando, ao mesmo tempo, para si próprio e para Louise.

Algumas crianças francesas, que estavam brincando na rua, ficaram surpresas ao ver um tenente de “Os amigos” caminhando lentamente na calçada e, de repente, começar a correr como se sua própria vida dependesse de sua velocidade.

Louise ainda não havia retomado ao hospital e Jimmie viu-se obrigado a entreter-se no portão, sem nada fazer, mas decidido a não perder a oportunidade de falar-lhe. Sentou-se à sua espera.

Louise aproximava-se, sentindo-se arrependida por sua demonstração de temperamento. Apesar de tudo, Jimmie estava sofrendo de comoção e tais pacientes nem sempre são responsáveis por suas acções. Seu passeio vigoroso sozinha, fez-lhe bem, e a circulação estimulante a que foi induzida tomou-a mais caridosa, tirando algumas teias de aranha de seu cérebro, e também lhe trouxe cor a seu rosto, embora naturalmente, ela não se apercebesse do facto.

Jimmie pulou de sua cadeira quando a viu, ou pelo menos, ele teria pulado se pudesse. Devido às circunstâncias, ele levantou-se o mais rapidamente possível e foi ao seu encontro. Se existem ou não certas coisas como auras ou se Louise reconhecesse uma ou já tivesse visto alguma, o fato é que antes que Jimmie pudesse proferir uma só palavra, ela sabia que não havia nele nenhum átomo que não estivesse vibrando de desculpas e perguntas; parecia-lhe, um cachorrinho brincalhão, adorável, tentando a todo custo, agradar. Como poderia recusar-se a falar com ele por alguns minutos? Não é evidente que escutaria o que Jimmie tinha para lhe dizer, embora tivesse que ser rápido porque seu turno começaria dentro de meia hora.

Jimmie já havia decidido que a única maneira era contar-lhe exactamente como os fatos se passaram, por isso, levou-a para um pequeno jardim onde um parque de recreação havia sido preparado para os convalescentes do hospital, e aí narrou-lhe inteiramente a história de sua aventura desde o momento em que se encontrou andando na colina até, como último acto, acordar no hospital. Ela ouviu com interesse, especialmente quando ele falou de Marjorie.

- E agora você entende - ele explicou - como é importante que eu encontre aquele endereço, pois, se esta rua e este número existirem e se há um homem chamado Campion morando lá, então, tudo que lhe contei é verdade e ele poderá ajudar-me convencendo-a de que esta experiência é verdadeira.

- Não há necessidade disso, Sr. Westman, porque se as coisas que me contou realmente aconteceram ou não, isto não afecta sua autenticidade. Acredito em todas as palavras que disse e acho tudo maravilhoso. Como gostaria de ver essas lindas cores das quais você descreve. A Marjorie, também, ela deve ser encantadora!

O coração de Jimmie palpitou violentamente como a alegre revelação que ela acreditava em sua história e, consequentemente, o perdoava por sua lealdade a Marjorie. Era evidente que Louise não acreditava na veracidade de seu relato, mas devido a maneira tão intensa e séria com que ele havia narrado suas experiências, embora ela considerasse toda a história fruto de imaginação ou resultado de um cérebro que está sofrendo de comoção, ela estava firmemente convencida de que ele acreditava no que dizia. Isto era o que lhe importava, pois explicava sua hesitação e seu amor por outra jovem além dela, fato que de maneira nenhuma, poderia perdoar não fosse a outra moça uma criatura meramente imaginária que não existia na realidade.

- Louise! Diga, Louise!

- O quê?

- Como estou contente por ter tido esta conversa com você. Sabe que eu temia que estivesse zangada comigo.

- Eu estava. Achei que você queria passar o tempo comigo aqui, ao mesmo tempo que tinha outra namorada na América.

- Eu não a culpo. Mas agora que sabe de tudo, você me perdoa, não?

- Mas, Sr. Westman, que absurdo. Não há nada para perdoar.

- No entanto, eu senti que quando pensou que eu tinha outra namorada na América, você se abalou um pouco com isso, caso contrário não teria ficado zangada. Diga, Louise! - ele repetiu a palavra, pronunciando-a vagarosamente. - Louise...

- Sim?

- Você não acha... talvez... depois de algum tempo, depois que me conhecer melhor...

- Sim?

- Você não acha... talvez... pode ser... você poderia interessar-se um pouco mais por mim?

Silêncio. Ele segurou as mãos dela enquanto ela virava seu rosto.

- Você poderia?

- Talvez...

No dia seguinte Jimmie pediu e obteve permissão para dar outro passeio e que Louise o acompanhasse, o que era uma necessidade devido as tonturas que poderia sentir de repente. O médico duvidou no início e gentilmente ofereceu mandar um ordenança com ele, ou algum soldado convalescente que não estivesse sujeito a "indisposições", mas a consternação de Jimmie foi tão evidente que o médico, por ser muito humano e bom, deu a permissão desejada. Mas, em seguida, preocupou Jimmie ao demonstrar-lhe uma ansiedade desnecessária no caso, através de um suposto medo de que as "indisposições" pudessem ser resultantes de um problema cardíaco.

Jimmie e Louise haviam estudado o mapa de Paris e descobriram que existe realmente uma Rue de la Ex, mas isto não provava nada, pois ele podia ter ouvido esse nome em algum lugar, e a mente subjectiva, com sua memória prodigiosa, podia ter conservado esse nome particular dentre todas as coisas com que está carregada, e reservou sua imaginação que, pelo acidente, foi abalada pela comoção. Jimmie sabia, ou achava que sabia, muito sobre mente subjectiva e cuidadosamente explicou o assunto a Louise enquanto andavam, mas ficou na dúvida se a sua linguagem técnica esclareceu alguma coisa a ela. Mesmo que tenha compreendido, notava-se que seu interesse pelos mistérios da mente subjectiva não era particularmente grande.

Diante de uma determinada casa na Rue de la Ex, eles pararam. A casa estava lá mas isto não provava nada. A porta de entrada estava numa passagem em arco que levava a um pátio interno. Eles tocaram a campainha.

 

 

 

 

CAPÍTULO V

O IRMÃO MAIOR EM PESSOA

Jimmie e Louise esperaram o abrir da porta com igual temor. Louise não acreditava em uma única palavra daquela maravilhosa história que Jimmie lhe havia contado, embora estivesse firmemente convencida que ele acreditava nisso. Jimmie, por sua vez, com sua intensa memória da aventura, estava certo de que aquilo tudo realmente tinha acontecido, mas estava temeroso do resultado dessa prova física, concreta, e estava pensando que desculpa daria se, como receava, a casa fosse habitada por estranhos.

Louise esperava que a porta fosse aberta por um porteiro comum e que a desilusão inevitável aconteceria. Estava tentando encontrar uma solução para ajudar Jimmie a enfrentar esse desapontamento. Jimmie abrigava os mesmos temores e buscava também uma razão admissível para justificar a Louise o engano de sua visão tão peculiar. Encontrava-se nesta difícil situação quando a porta se abriu.

Diante deles, com um sorriso de boas vindas e levemente irónico, como se, de alguma forma tivesse adivinhado suas perplexidades, estava o homem dos seus sonhos, idêntico em todos os detalhes do vestuário e da maneira de ser com aquele estranho e poderoso personagem que se tornara tão familiar a ele na chamada Terra dos Mortos que Vivem, sob o nome de “Irmão Maior”.

Aceitando seu convite cordial, eles entraram em uma biblioteca bem mobilada e sentaram-se. Só aí Jimmie conseguiu recuperar-se suficientemente de seu espanto, para poder fazer as apresentações. Com algum embaraço, ele apresentou o Sr. Campion para a Sra. Louise Clayton, com a breve declaração de que ela era a enfermeira que havia tomado conta dele durante sua recuperação. Acrescentou que havia narrado a ela sua grande aventura e insistido para que o acompanhasse nesta expedição.

- Estou muito contente que você tenha feito isto, tenente Westman, pois a Sra. Clayton foi escolhida para ser sua enfermeira por diversas razões, sendo que uma delas é que ela é uma alma bastante avançada e foi determinado que o trabalho de reintegração de seu corpo vital seria feito com maior facilidade e mais rapidamente com a ajuda dela do que através de outra enfermeira disponível. Como vê Sra. Clayton conheço-a bem, embora nunca nos tenhamos visto antes.

Louise respondeu de forma educada e um pouco formalmente, mas não foi capaz de esconder sua incredulidade à afirmação feita pelo Sr. Campion.

- Não obstante - continuou o Sr. Campion como se estivesse respondendo a alguma objecção - você foi escolhida e a sabedoria da escolha está aparente no resultado. Você tem uma aura forte e bem desenvolvida, e suas vibrações são harmoniosas devido a algumas combinações estelares das quais você não está crente, foi uma grande ajuda quando Jimmie (não vou chamá-lo mais tenente) estava recuperando a consciência. Você deve lembrar-se que quando se debruçou sobre ele para tentar ouvir o que ele estava murmurando, ele perguntou-lhe por que você não brilhava e onde estava sua aura e depois, imediatamente desculpou-se afirmando que você brilhava.

Louise estava perplexa. Ninguém estava presente para ouvir aquela conversa sussurrada. A enfermeira-chefe não havia saído do hospital, portanto, não podia ter procurado este homem e contado a ele. Além do mais, ela nada havia contado à enfermeira-chefe nem falado sobre isto com alguém mais. Ela tinha a certeza que Jimmie não saíra do hospital excepto a única vez na qual quase brigaram. Será que ele escrevera a esse homem ou esse homem tinha o poder de ler a mente? Se Jimmie tivesse escrito, ele a estaria enganando. Se o homem lesse a mente, ele era uma pessoa perigosa e astuta. Ela não sabia o que dizer, portanto, ficou em silêncio, mas seu olhar percorreu a sala.

O Sr. Campion disse:

- Sra. Clayton, tenho a certeza que irá perdoar-me se eu tentar tranquilizar sua mente, e, em consequência, a de Jimmie também. Para conseguir isto, é necessário que eu faça algumas afirmações que não poderão ser provadas  agora a você, pois essas explicações exigiriam muito tempo. Portanto, vou pedir-lhe que me ouça pacientemente e reserve seu julgamento para mais tarde.

- Para começar, devo assegurar-lhe que você não é vítima de nenhum plano preparado, e que Jimmie não me escreveu, nem a enfermeira-chefe tomou conhecimento do que você presenciou.

Louise olhou para o alto, rapidamente, seus olhos revelando uma grande admiração.

- Sua surpresa ao encontrar uma pessoa que pode ler a mente sem as armadilhas comuns de semelhante profissão, é perfeitamente natural.

Aqui não existe nenhuma parafernália comum a estes profissionais de maravilhas, e você procura em vão por crânios e corujas empalhadas e cortinas escuras. Eu posso assegurar-lhe que mesmo que a leitura da mente não seja nada difícil para um ocultista treinado, eu não estava lendo sua mente quando me referi às suas poucas palavras com Jimmie no momento em que ele recuperou a consciência. Sei o que disse na ocasião porque eu estava lá...

Louise olhou novamente para o alto com um gesto de surpresa e ia começar a falar, mas lembrou-se do pedido do Irmão Maior.

- Eu estava lá, embora você não me tenha visto. Segui-a quando foi apresentar seu relatório à enfermeira-chefe. Se você se recorda, ela estava sentada ante uma escrivaninha escrevendo e quando dirigiu-se a ela, ambas estavam sozinhas no escritório. Ela não se virou, mas simplesmente parou de escrever enquanto você falava. Logo em seguida respondeu: “Não sei, filha. Não creio que exista semelhante coisa.” Também ao sair do escritório, você encontrou dois ordenanças que traziam um ferido em uma maca e, naquele momento, um deles tropeçou. Você pensou que ele ia deixar o doente cair e sobressaltou-se e deu um passo para a frente dizendo: “Cuidado!”

O Irmão Maior sorriu para ela.

- Acho que isentei nosso amigo aqui, pois ele não podia ter-me escrito estas coisas.

Louise fez um ligeiro gesto, muito gracioso, de capitulação.

- E agora as razões que sustentam todas estas coisas estranhas. A raça humana é feita de uma multidão de espíritos individuais que estão evoluindo ou aprendendo através de repetidos renascimentos em corpos físicos, no plano físico, onde aprendem obedecer as grandes leis de nosso Pai do céu, exactamente como as crianças aprendem suas lições diariamente na escola. Neste grande esquema de evolução, estamos sujeitos à operação de duas grandes leis: primeiro, a Lei do Renascimento, que nos traz de volta ao mundo físico concreto, frequentemente em corpos e ambientes melhorados constantemente, embora devagar. Segundo, a Lei de Consequência, que diz que devemos sofrer os resultados naturais de nossos erros, frequentemente chamados de pecados, embora, algumas vezes, intervenham muitas vidas entre os erros e seus resultados.

Para que este período de nascimento, morte, aprendizagem e sofrimento possa ser reduzido, a maior ajuda possível é dada à raça por grandes hostes de seres espirituais que já passaram por escolas similares. Existem ocasiões (da mesma forma que existem exames nas escolas) em que é alcançado um ponto crítico na evolução, e a raça é, podemos dizer, examinada ou testada para ava­liar-se quais as entidades dignas de promoção.

Esta grande guerra é o grande ponto crítico jamais alcançado na evolução humana, e a necessidade de ajuda e instrução para a raça é maior do que antes. A ajuda pode ser dada, em alguns aspectos, mais efectivamente por membros avançados da mesma raça, por essa razão, muitos indivíduos estão sendo preparados e estimulados, agora, para que sejam capazes de dar essa assistência e esses ensinamentos. A necessidade é tremenda - muito maior do que você e Jimmie possam imaginar, e foi por isso que Jimmie foi mandado de volta à vida física, caso contrário, ele teria permanecido do outro lado. Foi por esta razão que você foi trazida aqui com ele, pois não deve pensar que é hábito dos ocultistas fazer alarde de seus poderes simplesmente para en­treter pessoas.

Você e Jimmie são almas adiantadas (não estou dizendo isto para elogiar nenhum dos dois), e em poucas vidas poderão alcançar, naturalmente, o ponto que se espera alcançarão agora nesta vida, se quiserem trabalhar. Ser-lhes-á dada ajuda, mas devem recordar sempre as palavras do Mestre que “A quem muito é dado, muito será exigido”. Portanto, a decisão de comprometer-se com o trabalho deve ser puramente voluntária e não assumida de maneira leviana, pois da mesma forma que o benefício é grande se recebemos este ensinamento condignamente, o perigo também é grande se o recebemos indignamente.

Jimmie e Louise olharam-se, ambos compreendendo a alusão àquela linda frase no serviço da comunhão. Jimmie disse:

- O senhor referiu-se antes ao grande trabalho a ser feito, mas não disse qual seria.

- Não, por algum tempo não tínhamos a certeza se seu corpo etérico poderia ser reintegrado a tempo, e quando isto foi conseguido não houve oportunidade para instruí-lo.

Por mais de uma hora o Sr. Campion continuou discorrendo sobre os diferentes planos da existência e os diferentes corpos correspondentes a esses planos, assinalando o trabalho dos Auxiliares Invisíveis tanto com os vivos quanto com os mortos. Louise e Jimmie escutavam com admiração que foi gradualmente transformando-se em reverência quando o grande Plano lhes foi apresentado. Nunca haviam escutado nada parecido, mas, ao mesmo tempo tudo parecia-lhes muito familiar, como se já o conhecessem de alguma maneira. A medida que o Sr. Campion continuava e mostrava como tudo se ajustava às Escrituras e principalmente às palavras proferidas por Cristo ao explicar as parábolas e projectar luz sobre as passagens ocultas e obscuras, Louise começou a perceber que todas as suas dúvidas desvaneciam-se e sentiu-se envergonhada por tê-las fomentado.

Não pensava mais em “provas”. Não havia necessidade de provas. Nenhum homem, por maior que fosse, poderia ter inventado um plano como esse. Nem mesmo o Sr. Campion, leitor da mente e ocultista, ou o que quer que ele fosse, poderia ter inventado um plano tão complicado e tão completo. Ele não precisava assegurar-lhe que era verdadeiro. Ela sabia, embora não percebesse como sabia. Todo o plano tinha a estampa e a assinatura da própria Divindade.

Jimmie também, tinha escutado absorto. As coisas que o Sr. Campion lhes transmitia, explicavam algumas das condições aparentes que ele tinha observado durante sua breve permanência no outro lado e, quando foram detalhadas a teoria e a prática de alcançar a liberdade nos outros planos da existência, ele começou a compreender que não é realmente necessário morrer para se provar a imortalidade.

- Mas por que, então - ele perguntou - se há todo este trabalho para ser feito no outro lado, por que tantas dificuldades e cuidados para trazer-me de volta?

- Porque a necessidade maior está neste lado do véu para aqueles que conhecem o facto da imortalidade, que visitaram a outra região e retomaram, que desejam e têm capacidade para propagar seu conhecimento; que podem confortar os moribundos e, em especial, aqueles que foram deixados para trás. A necessidade é para aqueles que podem dizer, “Eu sei”, ao mesmo tempo que dizem “Eu acredito”.

- Então, se eu persistir nos exercícios que me recomendou, acredita que eu possa desenvolver minha visão espiritual?

- Sem dúvida que pode, embora eu não o deva influenciar de nenhuma maneira, uma vez que a escolha deve ser de sua própria vontade, sabe o quanto eu quero encontrá-lo novamente como um voluntário no Grande Exército no qual você está alistado.

Jimmie compreendeu que vivia um momento muito sério. Ele queria ajudar. Seu coração encheu-se de compaixão por aqueles que estão sofrendo, morrendo e ao mesmo tempo... ao mesmo tempo... aquela coisa de “viver a vida”... será que ele poderia fazer isso? Quando voltasse ao seu regimento e à sua companhia... será que ele poderia conservar esse sentimento? Então surgiu uma dúvida. O Sr. Campion tinha dito, ou como se lhe houvesse dito, que no sono quase todos auxiliam, mais ou menos, sendo assim, por que ele não poderia fazer o quanto lhe fosse possível durante as horas de vigília e esperar ser um auxiliar invisível inconsciente durante o sono?

O Sr. Campion sentou-se, observando-os. Louise estava olhando para ele, mas não o estava vendo. Seus olhos tinham aquela expressão de “olhar distante”, que demonstrava que sua mente estava ocupada com outras coisas, o que ficou logo evidente quando ela disse:

- Por favor Sr. Campion, se puder, diga-me por que o trabalhador encarnado, que tem a liberdade dos outros planos, é muito mais valioso que o trabalhador desencarnado ou o trabalhador que não pode conscientemente visitar os mundos superiores. Isso não tem algo a ver com a força de vontade?

- Você absorveu muito bem a ideia, Sra. Clayton. O trabalhador encarnado tem um poder que o mesmo homem que perdeu o seu corpo pela morte não tem. A explicação é longa, mas você chegou bem perto ao falar de vontade. O trabalhador do outro lado, está lidando principalmente com aqueles que acabaram de “passar”, cujo dia na escola da vida física terminou e cujo período de revisão dessa vida física começou. O trabalhador deste lado do véu, contudo, pode ser capaz de influenciar a vida de muitos, evitando que façam coisas que caso contrário, certamente fariam e evitando-lhe muita dor no purgatório ao deixarem de praticar acções que lhes acarretariam uma dívida de destino.

Jimmie e Louise retomaram ao hospital muito quietos. Cada um estava ocupado pensando, e suas curtas e ocasionais palavras proferidas eram para rever algumas coisas que o Sr. Campion havia dito.

Um pouco antes de chegarem ao grande portão, Louise disse:

- Jimmie, tenho uma confissão a fazer.

- O que é?

- Você sabe que antes de entrarmos naquela casa eu realmente achava que sua aventura tinha sido fruto de sua imaginação. Acreditei que era apenas um daqueles sonhos provenientes da conturbação que sofreu.

- Eu temia isso.

- Mas não precisa temer mais. Acredito em todas as palavras, agora.

O prazer que Jimmie demonstrou plenamente em seu rosto e que surgiu da satisfação de ter sua história totalmente acreditada, fez com que o velho porteiro francês tirasse algumas conclusões bastante erróneas - a julgar pelo sorriso em seu velho rosto enrugado - quando Jimmie e Louise entraram no hospital, a não ser, como também é possível, que não tenhamos ouvido toda a conversa.

Reunido novamente a sua companhia, e depois de calorosos cumprimentos e congratulações por ter escapado, Jimmie dedicou-se a constante tarefa de exercícios e treinamentos que ocuparam uma parte considerável de seu tempo, embora a companhia estivesse agora em uma “posição de descanso” atrás das linhas.

A rotina, os afazeres bem conhecidos da vida militar, o constante contacto com seus homens e seus companheiros oficiais, por todos os quais era muito apreciado, tendiam a esmorecer o seu entusiasmo, e pensamentos prosaicos, comuns, usurpavam o lugar dos ideais elevados e das nobres aspirações que tanto o haviam impressionado. O “esplendor” de sua viagem à Terra dos Mortos que Vivem começou a apagar-se um pouco. Deveres imediatos urgentes - deveres inquestionáveis e exigentes - absorviam seu tempo. Quando os exercícios e as outras formas de treinamento acabavam, ele estava cansado e só com vontade de juntar-se ao grupo em uma visita a “Y” [3] ou outra diversão. Tentava sempre tranquilizar a sua consciência com a promessa que logo faria algo sério, assim que estivesse bem descansado.

Enquanto isto, como havia prometido, continuou fazendo o simples exercício que o Sr. Campion havia recomendado e que praticava todas as noites com a regularidade de um relógio, embora não pudesse ver, para salvar sua vida, como uma coisa tão ridiculamente elementar podia ter um efeito tão grande sobre ele. Era evidente, pensou, que o Sr. Campion estava errado, se não, por que este exercício não era amplamente divulgado? Por que alguns dos ministros das diversas igrejas não o conheciam e o ensinavam? Ele sabia que algumas críticas a alguns ministros tinham fundamento, mas sabia que, considerados como um todo excluindo uma minoria, os ministros eram honestos, conscientes e faziam o melhor de acordo com sua luz. Por que, então, não conheciam isto se era realmente certo?

Uma tarde, estava sentado escrevendo em um canto do “y”. Não havia muitos homens lá, mas perto dele um idoso pastor evangélico estava cuidando de um pequeno grupo de soldados que evidentemente estavam um pouco indiferentes para assistir aos serviços. Estes homens tinham estado em combate. Tinham visto seus companheiros morrerem - serem feridos - explodirem - intoxicados, respirando com dificuldade, com pulmões sangrando, ansiosos por um pouco de ar que não conseguiram obter. Estes homens tinham visto seus amigos jovens, corajosos, na plenitude da vida, morrer ante eles repentinamente e o efeito dessa experiência produzia neles uma atitude mais tolerante, mais profunda, mais elevada, mas sempre uma atitude diferente em relação ao grande enigma da vida.

O pastor tinha acabado de chegar e estava cheio de cuidados para salvar as almas destes pobres e perdidos errantes, para salvar os pecaminosos da fogueira eterna. Precisavam vir e ser salvos. Precisavam ser convertidos. Precisavam aceitar Cristo ou queimariam sempre no inferno como filhos do demónio. Precisavam converter-se e encher-se da graça antes que fosse tarde, pois o insondável poço estava esperando tragá-los com seu fogo eterno e...

- Oh, que se dane o diabo!

Esta interrupção de uma nova voz com uma nota evidente de impaciência chamou a atenção de Jimmie e ele olhou com interesse para quem havia falado.

 

 

 

CAPÍTULO VI

AS IDÉIAS DE UM SOLDADO SOBRE RELIGIÃO

O tom de voz da pessoa que falou por último, atraiu a atenção de nosso amigo Jimmie e ele ouviu interessado.

- O quê... o quê... o que quer dizer? - gaguejou o horrorizado pastor.

- Exactamente isto. Que se dane o fogo eterno. Não é lógico, não está nas escrituras, não é cristão, e não está na Bíblia. Além disso, um Deus que age como você diz que Ele age, seria um demónio e não um Deus.

Era um soldado alto e magro que falava. O intervalo de silêncio causado pela estupefacção do horrorizado pastor, que não podia acreditar no que tinha ouvido e estava mudo de surpresa, deu a Jimmie a oportunidade de olhar rapidamente o grupo antes do soldado continuar.

- Quem é Deus, então?

- Quem é Deus! Quem é Deus! Oh, meu querido irmão! Será que você pode ser tão ignorante para me perguntar isso?

- Tenho certeza que sim! Você parece saber muito sobre Ele, pelo menos você dá essa impressão. Agora diga-me somente quem é Ele e o que faz?

- Quem é Ele? Oh, não, não! Com uma vara de ferro ele rege o mundo e poderia quebrá-lo em pedaços como um vaso de barro. Ele fez você e seu único filho morreu por você para salvá-lo da condenação eterna, e você ainda pergunta, quem é Ele?

- Agora escuta-me, pastor. Eu não quero ser indelicado e não quero ser irreverente, mas passei por aquele inferno lá e vi meu companheiro, o melhor rapaz que jamais conheci, e o homem mais corajoso - aqui ele olhou ao redor do pequeno círculo como se quisesse desafiar alguém a negar o facto - o homem mais corajoso que já viveu. Vi-o ser atingido por uma granada que lhe arrancou as duas pernas, e ele morreu lá mesmo, nos meus braços, sem ajuda possível. Vi-o morrer e quando isto terminar, se eu estiver vivo, devo relatar à sua mulher e a sua mãe como ele morreu. E você diz que Deus fez o mundo, rege o mundo e Ele permite coisas como esta guerra? Por que Ele não evitou isto? Se Ele é tão grande e santo como você diz, por que Ele não deteve os homens que começaram esta coisa?

- Meu pobre irmão ignorante. Deus não permitiu esta guerra. Foi o diabo, o Grande adversário, que trouxe isto.

- Então Deus não rege o mundo! Ele faz-nos, mas fez um trabalho tão ruim que teve que enviar Seu único Filho para morrer e nos salvar, e mesmo assim Ele só salva uns poucos, você próprio disse que a grande maioria vai para o inferno, ouvi você dizer isto quando falava do caminho fácil que leva à destruição.

- Oh, mas meu irmão, isto tudo está na Bíblia. Você está negando, a Palavra de Deus.

- Eu não sei o que estou negando, mas não acredito que a Bíblia diga isto. Acredito que você lê a Bíblia e procura tirar dela aquilo que você quer tirar e não aquilo que a Bíblia quer dar. Agora, escuta-me por um momento e diga-me se estou cometendo um erro. Deus é todo poderoso. Não é?

- Sim, sim, é. Sem dúvida e...

- Então espere um momento, pastor, se você me permitir, é minha vez agora e estou tentando chegar à verdade, se puder. Agora, começando novamente, Deus é todo poderoso, isto quer dizer que Ele é capaz de fazer tudo?

- Sim, sem dúvida.

- Ouvi um ministro dizer certa vez, que Ele é omnipotente?

- Sim.

- Isto quer dizer que Ele é todo-poderoso mas quer dizer muito mais, também.

- Realmente! Você é um advogado hábil! - foi a exclamação de admiração de outro soldado do grupo.

- Bem, estudei muito advocacia e também pratiquei um pouco, mas nunca me dediquei a este tipo de debate.

- Agora meu irmão, deixe-me dar-lhe alguns tratados para ler.

- Não, pastor, não quero ler nenhum tratado. Eles todos fogem das grandes perguntas. Você começou este assunto e espero que continue a agir como um homem e não se perturbe porque não estou tentando prejudicar nenhuma religião. Estou real e honestamente procurando luz, mas quero luz verdadeira... luz do sol... não o seu tipo de luz de velas de sebo. Quero chegar à verdade. Estive no inferno, lá, atrás das trincheiras e caminhei, face a face com a morte. O mesmo aconteceu a todos estes rapazes aqui, e estamos procurando a verdade... factos... a verdade verdadeira, não qualquer imitação. Estou aqui agora para dizer-lhe pastor, que minha felicidade eterna vale tanto para mim quanto a sua vale para você, e não estou tentando chocá-lo, quero a verdade, o mesmo querem todos estes rapazes.

- Mas, irmão, eu já lhe disse. Aceite Cristo, vista a armadura do Evangelho e poderá resistir a todas as astúcias do inimigo.

- Lá vem você, Pastor, fugindo do assunto. As perguntas são: Quem é Deus, por que Ele nos fez, por que Ele permitiu esta guerra?

- Oh, mas você está errado. Ele não permitiu. É tudo contra Sua vontade...

- Contra Sua vontade e Ele é omnipotente? Não pastor, tente de novo.

- Mas eu lhe digo, irmão, venha humildemente ao trono da graça. Aceite Cristo com a mão direita da amizade e mesmo agora poderá ser salvo.

O soldado alto olhou para o pastor por um momento, deu um suspiro e foi-se embora.

- Sempre termina assim - ele disse para outros do grupo - jamais conheci um pastor que pudesse sustentar até o fim uma verdadeira discussão com alguém que quisesse conhecer a verdade, se é que ela existe. Eles sempre se esquivam e usam rodeios. Até logo, pastor - ele disse amavelmente ao retirar-se do lugar.

Jimmie rapidamente dobrou sua carta, colocou-a em seu bolso e seguiu-o. Esta talvez fosse uma oportunidade para começar o grande trabalho. O Irmão Maior havia dito que a tarefa não lhe seria imposta, mas ser-lhe-iam dadas oportunidades para trabalhar se assim o desejasse. Talvez essa fosse uma. Ele alcançou o homem que fez continência tranquilamente, enquanto procurava acertar seus passos ao dele.

- Ouvi parte de sua conversa com o pastor - disse Jimmie - e quero perguntar-lhe se permite, se era a expressão de seu real desejo quando disse que queria conhecer a verdade.

- Esteja seguro, meu tenente, que desejava, mas nunca consigo que um ministro responda as perguntas que faço e, mesmo assim, eu as acho razoáveis.

- Acredito que posso responder suas perguntas, se você me deixar tomar o lugar do pastor e, além disso, creio que nós vamos gostar da discussão.

- Está bem senhor.

O tom foi de resignação. Jimmie sentiu a situação. O soldado alto havia dito a verdade ao dizer que queria luz, mas não estava apreciando a ideia de que um jovem segundo-tenente pudesse ocupar os momentos livres de um soldado fatigado com uma discussão inútil sobre um assunto do qual devia ser totalmente ignorante. Ele (o soldado) tinha frequentemente ido a procura de luz com aqueles chamados divulgadores da luz e, em troca, só havia recebido... escuridão. Para este segundo-tenente presumir ter o que nenhum dos ministros tinha, era como um aluno da escola primária oferecer-se a ensinar a um major general os rudimentos da estratégia. Contudo, o soldado alto possuía boa índole e decidiu suportar esse assunto por alguns minutos para ver o que o tenente teria a dizer.

Jimmie disse depois de um curto silêncio constrangido:

- Sabe, senti pena daquele pobre pastor, você dirigiu-lhe algumas perguntas difíceis.

O soldado alto reprimiu o riso:

- Elas o deixaram bem atrapalhado, não?

- Sim, deixaram. No entanto, as respostas são muito simples.

- Gostaria que você me desse essas respostas.

- Bem, faça suas perguntas.

- Existe uma vida depois da morte?

- Sim.

- Como você sabe?

- Porque estive lá e voltei.

- Caramba! Você ganhou esta, talvez. Mas, aqui vai outra: Como sabe que esteve lá e voltou?

- Já esperava essa pergunta. Sei que estive lá e voltei porque conheci e falei lá com pessoas que conheci na vida terrena, e também porque conheci e falei lá com um homem que não conhecia antes, mas que não havia abandonado ainda o seu corpo físico e, ao seguir suas instruções, encontrei-o mais tarde em seu corpo físico. Porém, reconheço plenamente que o que é prova para mim, não o é para você, pois você só tem minha palavra e mesmo que me conhecesse bem e não duvidasse do que eu disse, mesmo assim existe uma grande margem de erro de julgamento, de modo que, no sentido exacto da palavra, não pode haver “prova” para você a não ser através de sua própria experiência. Mas pode haver uma prova secundária, uma evidência circunstancial, como você pode dizer, que seria uma “prova” dez vezes mais convincente do que qualquer coisa que eu possa afirmar, ainda que não duvidasse de minha palavra.

- O que você quer dizer exactamente?

- Quero dizer isto: desde sua infância, disseram-lhe que há um Deus, que Ele é sabedoria, conhecimento, amor, etc. Você vê certos factos no mundo ao seu redor que acha difícil conciliar com tal ideia de Deus. Você vê injustiça, miséria, guerra, dor, tristeza, separações; constatamos que alguns têm sorte a vida inteira e alguns são infelizes sem que tenham cometido faltas. Você vê todas essas coisas e, naturalmente, quer saber por que elas existem em um mundo que foi criado por um Ser cujo nome é amor. Uma vez que estas coisas existem, e uma vez que não são evidências de amor, Você argumenta que Deus não existe de maneira nenhuma, ou que lhe faltam alguns dos atributos que lhe são atribuídos ou que existe um Poder Rival de obscuridade, de força parecida, senão igual à força poderosa de Deus. Não é assim?

- É exactamente esse o caso, tenente.

- Você pergunta as razões por que estas coisas são permitidas no mundo, e eles respondem com subterfúgios e chavões, que demonstram que os homens que devem conhecer melhor as coisas de Deus, são realmente tão ignorantes quanto você, mas nem sempre suficientemente honestos para admitir isso. Eles acreditam em certas coisas que vos parecem sem evidência suficiente e querem que acredite exactamente no que eles acreditam, mas são totalmente incapazes de responder qualquer de suas perguntas, e até se ressentem quando as faz. Contudo, todo problema torna-se como a luz do dia quando percebemos que todos nós somos espíritos em evolução, partes de Deus exactamente como diz a Bíblia, quando sentimos que estamos crescendo em experiência, conhecimento e poder através das muitas vidas, uma após outra, que vivemos na terra. Estamos sujeitos a duas grandes leis: primeiro, a Lei do Renascimento, que nos traz várias vezes de volta ao plano físico; segundo, a Lei de Consequência que decreta que colheremos exactamente o que semeamos repetindo o que nos diz a Bíblia. Entre nossas vidas terrenas, estamos em outro estado de consciência, no qual a experiência da vida passada é incorporada ao nosso espírito como consciência. O pecado é o resultado da ignorância das leis de Deus, e o sofrimento resultante, com o tempo, ensina-nos como obedecer essas leis, da mesma maneira que uma criança que tenha queimado seu dedo aprende a evitar uma lareira acesa. Porém, alguns são afortunados porque progrediram mais que outros no caminho da evolução, aprenderam mais lições e estão em condições de viver mais de acordo com as leis de Deus. Outros são infelizes porque em vidas passadas agiram mal e contraíram dívidas de destino, ou melhor, não conseguiram progredir tanto no caminho da evolução porque não pagaram todos os seus débitos, pois ninguém, em todo o universo de Deus, vem ao mundo para sofrer por algo que não mereceu devido às suas acções no passado. No entanto, é conveniente salientar que o passado abarca centenas de vidas. No grande esquema da evolução humana existem grandes momentos de mudança, nos quais uma ajuda extra é fornecida. Esta guerra é um desses momentos e permitiram que isso acontecesse porque a raça estava ficando atolada no materialismo e era preciso um grande choque para que o pensamento da humanidade se voltasse para a única coisa real no mundo: o estudo das leis de Deus e a determinação de obedecê-las. As leis de Deus nunca foram tão bem resumidas como o foram por Cristo, quando Ele disse: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos.” Estou sendo claro nestas explicações?

- Sim..., mas se eu vivi antes, por que não me lembro?

- Bem, as causas que operam para evitar que nos lembremos de nossas vidas passadas são complexas, e levaria muito tempo para explicá-las. Mas o facto é que estamos diante de uma providência misericordiosa da natureza, pois se nós lembrássemos de todas as nossas vidas passadas, não poderíamos avançar no caminho, pois os antigos amores e ódios do passado levar-nos-iam à acções erradas. Um menino na escola usa uma lousa até concluir os primeiros graus, quando já não comete erros de contas. Mais tarde, ele descarta a lousa e usa lápis e papel, em seguida usa a tinta. O mesmo acontece connosco. Quando aprendemos a viver correctamente não cometendo tantos erros, quando estivermos libertos das paixões, dos sentimentos de ódio e vingança, recordaremos todas as nossas vidas passadas.

- Parece correcto, mas não posso entender como não me lembro de ter vivido antes.

- Pense sobre o que lhe disse e talvez possa entender.

Jimmie achou melhor parar a explicação por aí e deixou o rapaz ir embora. Sentia-se decepcionado, também, pois sua incapacidade em transmitir um assunto tão claro, era algo desalentador para seu entusiasmo. Não tinha percebido que cada um tem suas limitações, e que as limitações de um estão a uma distância diferente do centro das limitações de outro. Um grande círculo pode conter um menor e compreendê-lo, pois percebe que há mais espaços além desse círculo pequeno, mas o círculo menor não pode compreender o maior até que tenha aprendido a raciocinar através da existência de círculos ainda menores e que pode haver algo mais além de suas limitações. É fácil para nós, vermos as limitações dos outros, mas difícil ver as nossas próprias, até que aprendamos primeiro a tirar a trave que está em nosso olho antes de tentar remover o cisco que está no de nosso irmão.

E agora começou para Jimmie uma vida na qual encontrava pouco tempo para levar avante esse trabalho que tanto desejava realizar. Seu regimento foi enviado de volta às trincheiras, a vida extenuante e a pouca privacidade e calma de que dispunha, impediam que avançasse em seu próprio desenvolvimento. Contudo, ele conseguiu executar a maior parte dos simples exercícios que o Sr. Campion lhe havia recomendado e conseguiu pronunciar, de vez em quando, algumas palavras sobre a vida superior quando lhe surgia uma oportunidade. Mas o excitamento da luta, seu regimento estava agregado a um contingente do exército britânico e juntos estavam contendo o avanço alemão na primavera de 1918, fazia com que sua actuação ficasse quase que totalmente voltada para os assuntos militares. Porém, o seu caso estava em mãos mais poderosas que as suas e um dia, em um ataque para retomar uma trincheira, ele recebeu uma bala no braço direito e foi mandado mais uma vez para um hospital, o que o deixou furioso pela sua falta de sorte.

Neste hospital não havia nenhuma Louise e mal havia curado seu ferimento, recebeu ordens de embarcar imediatamente para a América para os serviços de instrução em um dos grandes campos de treinamento. Tentou, em vão, conseguir uma licença que o permitisse procurar Louise, mas a situação era urgente e as ordens eram peremptórias. Escreveu uma carta desesperada para o Sr. Campion, mas não obteve nenhuma resposta, e foi forçado a embarcar tendo a seu cargo um pequeno contingente de homens feridos, sem realizar o trabalho que almejava. Deixou na França Louise e o Sr. Campion, seus camaradas ainda lutando com unhas e dentes para conter a invasão cinza, e, como declarava amargamente, sentindo-se em perfeitas condições físicas, ser forçado a voltar a seu país antes de terem vencido a guerra.

Oh! a amargura daquele embarque, deixando para trás, na França, a Grande Guerra, na qual desejava continuar; a moça que amava e o homem a quem procurava como guia no grande trabalho que debilmente havia vislumbrado! Deixou para trás todas as grandes actividades que haviam entrado em sua vida e a haviam mudado tão completamente; deixava tudo para quê? Por uma segurança que desprezava, por um trabalho que sentia que outros poderiam fazer melhor que ele, por uma vida de facilidades mal recebida e, acima de tudo, por aquele amargo sentimento de separação daqueles que desejava ter ao seu lado.

Jimmie embarcou deprimido por um sentimento de injustiça e de calamidade. Seu braço deu-lhe bastante trabalho, pois precisava tê-lo a maior parte do tempo em uma tipóia, e constatava que, se estivesse nas trincheiras, mal se daria conta desse contratempo e da dor que ele causava. Mas agora, pequenas coisas o aborreciam e as ninharias pareciam-lhe importantes. Tornou-se, não propriamente mal humorado, pois Jimmie possuía uma natureza alegre, mas menos risonho e animado. Passava o mínimo tempo possível fora de sua cabine e dava a impressão de estar sofrendo mais da comoção da explosão do que do ferimento em seu braço. Como essa comoção era considerada muito especial e actua de mil maneiras diferentes, suas pequenas fraquezas não suscitavam comentários e, com humor, contemporizava-se com elas na medida do possível.

O barco já navegava há dois dias e duas noites; já era tarde da noite do terceiro dia, bem depois do escurecer, e ele encontrava-se sozinho debruçado no corrimão do convés olhando pensativamente para o mar. A lua estava surgindo, uma luz que começava a aparecer, dando pouca luz para não ofuscar a beleza das estrelas. A brisa estava soprando suavemente vinda do sul, e o grande navio navegava através da escuridão sem que nenhuma luz lhe indicasse o caminho, balançava lenta e brandamente, levantando ligeiras ondas ao avançar com dignidade em seu movimento, como se, de algum modo, sentisse sua existência separada e o valor do precioso carregamento humano que abrigava.

Jimmie debruçava-se respirando profundamente o ar salgado que era tão limpo e fresco em comparação à atmosfera da Terra-de-Ninguém, carregada pelo ódio humano e pelos destroços da guerra humana, e observava cada longa onda que batia lentamente no costado do navio, levantando-o tão facilmente, tão tranquilamente, como se levantar mil toneladas fosse uma simples brincadeira. A demonstração de tão grande poder foi trazendo à mente de Jimmie, dilacerada por tristeza e desilusão, um sentimento de calma e de descanso e quando olhou do oceano para o céu e viu as grandes estrelas brilhando quietamente acima dele, como haviam brilhado sobre Colombo e os marinheiros da Armada Espanhola, como haviam brilhado sobre Roma e Cartago, sobre Babilónia e Baalbec, sobre os construtores das pirâmides, sobre os exércitos e a armada da antiga Atlântida, sentiu nascer dentro de si uma leve percepção daquele grande Poder, cujo Ser eles testemunhavam e cujo propósito sublime não podia ser desviado nem por um fio de cabelo, nem mesmo por uma grande manifestação de todas as pessoas do globo.

Sua mente retrocedeu na história e ele imaginou as guerras, pragas, pestes e fome; miríades de cenas de batalhas, assassinatos e mortes repentinas, de vidas de pessoas desconhecidas, de amores e ódios de homens e mulheres mortos há milhares ou dezenas de milhares de anos atrás, sobre os quais estas mesmas estrelas haviam brilhado com a mesma tranquilidade, esperando, imperturbáveis, o desenrolar do Grande Plano de Deus.

Pareceu-lhe que os quadros destas coisas passavam rapidamente por sua mente como se o mundo oscilasse em seu caminho pelo espaço, deixando girar atrás de si, como uma densa nuvem de fumaça visível aos olhos espirituais, as preces e lágrimas de toda a humanidade, os gritos dos feridos e dos moribundos em todos os campos de batalha desde o começo da história, os apelos de misericórdia, a agonia do desespero, a luta das nações, o surgimento das raças e sua queda, o grito dos famintos - todos unidos nesta densa nuvem preta que deve elevar-se até ao Trono de Deus. E através dela surgia e ouvia-se aquele mesmo apelo desesperado: Por quê?

Então, ele pensou em sua pequena parte no Drama Supremo, como tinha sido protegido e como lhe foi mostrado pouco do grande Plano, como havia sido levantada uma ponta da obscura cortina, por um momento, para que pudesse ter um vislumbre da­quilo que estava além, de modo que soubesse como podia ajudar.

Como havia cumprido sua missão? O que havia feito? Em sua conversa com o soldado que lhe havia feito aquelas perguntas no local do “Y”, o que havia conseguido? Nada!

Sua consciência atormentava-o, no entanto, como poderia ter argumentado? Essa questão, segundo começou a compreender, era muito grande para ser resolvida em uma explosão de entusiasmo, por mais ardente que fosse. Devia ser a tranquila e firme obra do tempo, contínua, infatigável, buscando todas as oportunidades, não intimidada pelo fracasso, e satisfeita se, aqui e lá, pudesse ajudar uma pessoa, ainda que ligeiramente. Então, talvez, depois da guerra, poderia voltar a Paris e reencontrar o sábio Sr. Campion o “Irmão Maior”, e aprender como se preparar para a Grande Obra.

E, à medida que seu pensamento se fixava naquele firme propósito de “continuar” não importando o quanto a tarefa parecesse desanimadora, a calma das grandes estrelas encheu seu coração, e voltou-se para procurar sua cabine e, talvez, escrever algumas palavras mais em uma carta para Louise, que ele pretendeu enviar-lhe assim que chegasse à terra firme.

Ao fechar cuidadosamente a porta de sua cabine, antes de acender a luz que, como oficial, tinha a permissão de usar e que estava bastante protegida para não deixar escapar nenhuma claridade que pudesse ser vista por submarinos inimigos, sua mente estava preenchida pela magia das estrelas, do mar e decidida com a resolução de provar que, com o tempo, seria digno da confiança que havia sido depositada nele. Desejava mostrar ao Sr. Campion, se algum dia pudesse encontrá-lo novamente, que não era um aluno totalmente indigno.

Mas não estava preparado para a emoção que experimentou ao afastar-se da porta. Sentado serenamente em uma cadeira da cabine, como se sua presença fosse a coisa mais natural do mundo, estava o homem em quem Jimmie acabara de pensar: Sr. Campion.

Jimmie, dominado pela surpresa, balbuciou: “Oi... Oi...” e estendeu sua mão para seu inesperado visitante. Por um instante, não foi capaz de pensar em outra palavra para expressar-se, tão surpreso estava. Mas o Sr. Campion, ao invés de estender-lhe a mão, indicou simplesmente a Jimmie, com um sorriso, que se sentasse na beira do beliche.

- Não estou aqui em meu corpo físico, de maneira que não posso apertar suas mãos, mas estou feliz que você possa ver-me tão claramente. Vim para levá-lo a uma pequena excursão, se não estiver com medo de aventurar-se, e como dispomos de pouco tempo, se quiser deitar-se em sua cama e dormir, começaremos nossa viagem.

Jimmie poderia ter feito algumas perguntas ou expressado alguma apreensão se o Sr. Campion não tivesse usado aquela expressão “se você não estiver com medo”, mas depois deste desafio ele sentiu que não ficava bem para um oficial do exército americano recuar. Então, com toda a calma desligou a luz, deitou-se confortavelmente na cama e quase sem sentir encontrou-se de pé olhando para seu corpo estendido na cama e para toda cabine, tudo tão claramente visível como se estivesse acontecendo à luz do dia. O Sr. Campion, não mais evitando contacto físico, estava de pé ao seu lado com uma mão em seu ombro.

- Esta é a sua primeira saída consciente do corpo, e não deve temer que não venhamos a encontrar o navio novamente ou que algo aconteça a ele enquanto você estiver ausente. Segure minha mão e confie em mim implicitamente, e o que quer que possa ver, não deixe o medo apossar-se de você. Venha.

Elevaram-se directamente pela estrutura do navio, flutuaram por um momento sobre seus mastros, contemplando-o, pois era uma linda visão vê-lo mergulhar nas calmas e ligeiras ondas, cenário plenamente visível à sua visão etérica.

Apesar das garantias que o Sr. Campion havia dado, Jimmie estava com medo. Lá em baixo estava seu corpo estendido no beliche, provavelmente bastante seguro, mas indo para um lado enquanto ele ia para outro. O tempo estava calmo, mas não era o tempo que obrigava o navio a navegar a pleno vapor e desprovido de luz. Suponhamos que um submarino - ele refreou-se. Muitas vezes havia escalado o topo de algum lugar, e sempre que o fazia sentia medo, mas ninguém que o visse saberia que o tenente Westman estava com medo. Jimmie tinha a verdadeira coragem para cumprir seu dever, estivesse ou não temeroso de fazê-lo, e além disso, tinha ouvido muitos homens corajosos admitir que sentiam medo, daí não ter vergonha de demonstrar que estava com medo e jamais fez transparecer esse receio. Portanto, decidiu que essa experiência não faria aflorar qualquer expressão do medo que realmente sentia. Afastou-se do navio e olhou directamente para o rosto de seu guia com o sorriso de quem estava disposto a enfrentar tudo que pudesse ocorrer.

 

CAPÍTULO VII

AJUDANDO UM SOLDADO MORTO A CONSOLAR SUA MÃE

O Sr. Campion virou-se para ele com um sorriso:

- Vejo que não se esqueceu de como “deslizar”, assim, começaremos nossa viagem.

Começaram imediatamente a movimentar-se com tremenda rapidez. Jimmie segurava a mão do Sr. Campion e percebia, à medida que avançavam, que havia um grande número de pessoas viajando como eles pelo ar, fato que não tinha observado em sua primeira visita à Terra dos Mortos que Vivem. Movimentavam-se em todas as direcções alguns mais rapidamente, outros mais vagarosos, alguns simplesmente vagando e aparentemente dormindo. Seu próprio deslizar era tão rápido que simplesmente formulou uma nota mental do facto, esperando, mais tarde, perguntar sobre isso ao Sr. Campion.

Em menos tempo do que o necessário para descrever isto, eles encontraram-se na linha de batalha na França e pararam defronte a um pequeno abrigo subterrâneo, dentro do qual vários homens conversavam. Jimmie reconheceu um como o soldado alto que ele havia conhecido no local “Y”. De sua conversa deduzia-se que eles iriam participar de um ataque que aconteceria dentro de um ou dois dias. Estavam discutindo sobre as condições “post-mortem”, se é que isso existia. Mas estavam discutindo isto de uma maneira muito estranha... parecia que tentavam ocultar, sob um disfarce de escárnio, uma verdadeira ânsia por informações.

Um dizia:

- Não acredito que a morte seja o fim de tudo mas não me parece que tenhamos uma noção exacta acerca disto. Lembro-me de um antigo hino que escutei em um culto religioso. Não me lembro exactamente como era, mas dizia algo assim:

“Em um momento minha alma aqui estará;

No próximo, além das estrelas se encontrará.”

- É certo que algumas vão, não será assim?

- São Pedro não seria capaz de formular uma pergunta a alguém tão rápido!

- Além disso, a pessoa estaria indo em tal velocidade que passaria directo pelo céu e se encontraria no outro lado antes que pudesse parar.

- Estaria sem sorte, não? Mas não acredito que a pessoa que escreveu esta canção soubesse alguma coisa. Não acredito que as pessoas se transformem assim, quando morrem. Olhe o Johnson. Ele é tão vagaroso que não é possível fazê-lo sair de seu ritmo e acreditam que ele viraria um foguete se morresse? Não senhor! Jamais alcançaria uma tal velocidade. Levaria uma semana para perceber que estava morto. Suponho que quando um homem morre, permanece como se estivesse encantado e depois vagarosamente segue adiante.

- Para onde?

- Não sei. Provavelmente onde tenha alguns negócios. Alguns gostariam de ir para o céu e tocar harpa, outros não. Para mim, nunca toquei harpa e não consigo cantar, então, acho que preferia ficar sem fazer nada e ver como as coisas se desenrolariam.

- Talvez você não pudesse. Suponhamos que estivesse destinado para algum lugar e um sujeito corpulento fosse atrás de você empurrando-o com um forcado para que não parasse.

- Não, não acredito nisso. Não acredito em nenhum demónio. Ouvi alguns ingleses contar coisas que viram à noite, quando a guerra começou e eram completamente diferentes disso.

O soldado inquiridor, com quem Jimmie conversara, interrompeu a discussão dizendo:

- Creio que um tenente com quem conversei algumas semanas atrás tinha a explicação certa. Ele disse que nós tínhamos vivido antes e que voltaríamos a viver e que, depois de morrer, continuaríamos a ser a mesma espécie de homem que éramos antes. Naquele momento pareceu-me tolice, mas quanto mais penso no assunto, mais acredito que ele estava certo.

Aqui, o Sr. Campion afastou Jimmie.

- Temos tão pouco tempo - ele disse - que precisamos aproveitá-lo. Percebeu que a semente que você plantou e que pensou estar perdida, realmente germinou? Faz com que o homem começasse a pensar. Mais tarde se ele entrar em contacto com os ensinamentos ocultistas, não será uma novidade para ele e estará pronto para levá-los em consideração.

Avançavam rapidamente enquanto o Sr. Campion falava e este mal havia concluído sua explicação quando chegaram a uma sala onde um casal idoso, evidentemente marido e mulher, estava sentado. Já era mais de meia-noite mas eles não pareciam ter sono. Um envelope oficial sobre a mesa contaria a história desse momento, mas não havia necessidade disso ao observarmos o casal. A mulher chorava dolorosamente e o homem permanecia em silêncio, embora as lágrimas deslizassem por sua face. De pé, a um lado, via-se um soldado em seu uniforme rasgado e sujo, com uma série de buracos de balas em seu peito, onde uma metralhadora, evidentemente, havia causado isso. Estremecia de dor e contraía-se quando a mulher chorava, esticava seus braços para ela e chamava-a “mãe”, mas ela não ouvia.

O Sr. Campion aproximou-se do soldado.

- Amigo, ele disse, e Jimmie pensou nunca ter ouvido uma voz tão bondosa.

O soldado virou-se para ele.

- Não posso fazer com que ele me ouça. Se ela soubesse que estou vivo e não... não... estou sofrendo! Ela acha que eu estou morto! Mas eu não estou. Estou tão vivo quanto antes, mas não posso fazer com que ela me ouça!

- Amigo!

Novamente aquela voz suave parecia mudar as vibrações tensas existentes naquela sala.

- Na verdade, você não está morto, mas deixou de lado seu corpo carnal e eu posso ajudá-lo. Ouça-me e faça exactamente o que eu disser:

- Imagine-se em um uniforme limpo, novo, sem ferimentos e sinta-se feliz. Tente imprimir esse pensamento na mente de sua mãe.

Lentamente, enquanto Jimmie observava a cena, o uniforme rasgado e sujo ficou limpo, os ferimentos de bala desapareceram, o rosto do homem perdeu as linhas de dor que o marcavam. Olhou-se e deu um suspiro de surpresa.

- Agora, disse o Sr. Campion - pense em você sempre limpo, feliz e continue dizendo a ela “Eu a amo, eu a amo!” e depois de algum tempo, quando ela for dormir, poderá falar-lhe, pois nessa ocasião, ela deixará o corpo por um bom tempo. Depois, tente fazer com que ela perceba que você está vivo, bem, e que a ama. Amor é a força maior em todo o mundo e, com o tempo, conseguirá aliviar a dor dela. A noite, enquanto ela dorme, você poderá ficar ao seu lado para conversar.

O soldado dirigiu-lhe um só olhar, mas este manifestava tanta gratidão e respeito que nenhuma palavra poderia ter expressado melhor esses sentimentos. Começou a seguir suas indicações.

Jimmie e o Sr. Campion retiraram-se para um canto enquanto o soldado, forçando um sorriso em seus lábios, continuava repetindo a fórmula, debruçando-se sobre a mulher, enquanto ela soluçava.

Gradualmente, os soluços foram parando e um olhar de paz surgiu em sua face.

- Henrique, - ela disse ao marido - está tudo bem com ele, estou sentindo. Ele está vivo e bem.

Novamente o Sr. Campion pegou Jimmie pelas mãos e começaram a viajar. Desta vez, estavam voltando para o navio. Jimmie encontrou-se exactamente sobre a embarcação e viu em uma pequena cabine, seu próprio corpo que dormia tranquilamente.

A lua achava-se no poente e, para a visão física, a superfície do oceano estaria escura. Mas aqueles que viajam pela Terra dos Mortos que Vivem não precisam de sol durante o dia, nem são molestados pela escuridão da noite.

As leis naturais regem todo o cosmos, o que é uma outra maneira de dizer que Deus reina em todos os lugares. Mas a acção de certas leis naturais diferem nos diferentes mundos, e aqueles que se encontram de repente projectados nos reinos mais elevados do ser, frequentemente estão propensos a sentir-se muito surpresos pelas coisas que vêem e ouvem.

Jimmie contemplou a linda visão que se estendia abaixo dele, onde o grande navio navegava suavemente pelo oceano tranquilo, rodeado pela interminável extensão das águas, sempre em movimento, que correm de horizonte a horizonte, sem nenhum olho humano observando a lenta dignidade de suas vagas à medida que se levantam como poderosos gigantes, formando um bonito rendilhado espumoso para em seguida se desfazerem.

- Jimmie - disse seu companheiro enquanto pairavam no ar - algum dia irei levá-lo a uma verdadeira viagem através do espaço e do tempo, e irei mostrar-lhe a antiga Atlântica e as coisas que aconteceram lá muito antes do início da história. Lemos contos e romances de ficção, mas afirmo que nenhum livro pode transcrever as coisas maravilhosas que aconteceram naquela estranha e antiga terra sobre a qual estas ondas também passaram. Agora, vamos para sua cabine.

Desceram suavemente e entraram na cabine onde Jimmie pôde observar seu corpo que respirava calmamente enquanto dormia.

- Que coisa incrível, não é?

- O quê? - perguntou o Sr. Campion.

- É estranho o que acontece! Lá estou eu, respirando tão re­gularmente quanto um relógio, e aqui estou eu, fora dele e desligado, como você podia dizer, mas, ao mesmo tempo, funcionando tão bem como sempre.

- Esta visão pode ajudá-lo a compreender que o corpo é só um instrumento para ser usado por “você”, que está agora diante dele. Mais tarde, irá entender que o “você” que está aqui é somente um instrumento de um “você” ainda mais elevado.

- Eu me pergunto - disse Jimmie pensativamente - se eu ficaria sabendo disto se este navio tivesse sido torpedeado e meu corpo se afogasse enquanto eu permanecesse fora dele.

- Com certeza você saberia se isso acontecesse, mas, como eu tinha conhecimento de que nada disso ocorreria, vim buscá-lo. Mais tarde, pretendo ensinar-lhe a deixar seu corpo quando desejar.

- Eu não deixei meu corpo hoje à noite?

- Não, não como eu quero dizer quando menciono deixar o corpo. Todos deixam o corpo no sono. Você deixou o seu depois de adormecer e depois você acordou. Mas você não deixou seu corpo conscientemente. Se o tivesse feito, teria encontrado o Guardião do Umbral.

- O que é isso?

- A soma do mal de suas vidas passadas. Mas existe uma coisa a mais que quero explicar agora, em vez do Guardião. O que você notou em particular, sobre o soldado que estava tentando fazer com que sua mãe o ouvisse?

- Bem... eu não sei. Deixe-me ver, ele havia sido morto por uma metralhadora não?

- Não. Quero dizer que lição você pôde tirar daquilo? Todas as vezes que você sai em uma viagem pela Terra dos Mortos que Vivem, não é para satisfazer seu amor pela aventura, mas para aprender uma lição. Todas as vezes no futuro, quando for capaz de “viajar” sozinho, deve estar realmente atento para aprender uma lição. Mostrei-lhe o soldado inquisidor com um propósito, e levei-o para o outro lugar, também com um propósito.

Depois disso, terá que descobrir as lições por si mesmo, pois grande parte do bem que produzem é decorrente do trabalho que proporcionam e do pensamento e concentração empregados para alcançá-lo. Desta vez, para mostrar-lhe o que quero dizer e para iniciá-lo da maneira correcta, vou ajudá-lo.

- Você precisa procurar as grandes pequenas coisas, e não as pequenas grandes coisas. Realizou uma viagem maravilhosa, daquelas invejadas até por reis, como as que costumávamos ler em contos de fadas ou nas histórias das Mil e Uma Noites. Uma coisa espectacular se houvesse alguém para contemplá-la, mas esta viagem não teve maior importância comparada a um número de pequenas coisas que, aparentemente, você não percebeu.

- As coisas que você precisa procurar são as que enfatizam grandes verdades, coisas que são verdadeiras para todos. A viagem, de certa forma, foi óptima, mas foi óptima só para você. Se saísse pelo mundo contando sua maravilhosa viagem, as pessoas não acreditariam na sua palavra, e mesmo que acreditassem, que conseguiria com isso? Do ponto de vista do espírito evolutivo, nada teria realizado.

- Porém, fixemo-nos em uma das pequenas coisas que você percebeu, mas que não o impressionaram porque não estava atento a essas coisas. O facto simples do soldado estremecer e contrair-se quando a mãe chorava, considere esse facto e pergunte-se: Por quê? Por que ele agiu como se alguém o tivesse atingido com um chicote? Não seria perfeitamente natural que ela chorasse? Se ela tivesse gargalhado ou sorrido ele não teria motivo justo para ressentir-se como se ela estivesse alegre por ver-se livre dele? Bem, a chave está nisto: ele sabia, pelo facto de estar mais sensível aos pensamentos dela do que quando estava no corpo físico, que ela tinha um medo subconsciente de que a morte é o fim de tudo e de que, uma vez morto, ela o perderia para sempre. Isto foi o que lhe causou tanta dor. Foi por isso que ele estremeceu e contraiu-se.

Ele sentia-se vivo e sabia que estava vivo. Estava em outro plano de existência, mas estava vivo e não morto. Se pudesse transmitir-lhe isso, apresentar-se a ela apenas por um momento, como ser vivo, ela relaxaria a intensidade de sua dor, a morte teria sido despojada da metade de sua repugnância, não, mais de metade, de nove décimas partes. É essa a lição, o que você deduz disso?

Jimmie hesitou, olhando seu corpo que dormia na cama. Não estava seguro de qual seria a lição. Porém, o Irmão Maior não lhe deu muito tempo para reflectir, pois ele começou novamente:

- Para descobrir em que consiste a lição, será fácil se você for metódico. Extraia da situação as verdades permanentes, universais. Existe um filho que foi morto, uma mãe que sabe que ele foi morto, essa mãe demonstra uma dor perfeitamente natural, você tem (pois está capacitado a ver dos dois lados do véu) você tem a aflição natural da mãe, a qual causa ao filho (invisível para ela) uma enorme tristeza. Estas coisas são universais, assim como o é a morte, pois no caso que estamos considerando, a maneira da morte do filho não é o que importa. Observamos, realmente, que a dor profunda e desesperada causa sofrimento aos mortos. Também observamos que as lamentações dos familiares e amigos causa-lhes grande dor e desvia-lhes a atenção das novas condições que os cercam, o que atrasa sua evolução. Uma vez que a intensidade peculiar destas lamentações é causada pela crença ou temor dos vivos de que a morte é o fim de tudo, existe um sofrimento totalmente inútil, proveniente da ignorância, que está prejudicando tanto os mortos quanto os vivos. Está ficando mais claro?

- Sim, de certo modo. Posso ver onde a dor perturba os mortos e como os vivos sofrem muito mais do que precisam sofrer, e tudo por causa da ignorância. É esta a lição?

- Em parte, mas só em parte. Por outro lado, o sofrimento lá é muito maior do que no lado de cá porque não é amortecido pela carne, por isso, o homem morto sofre muito mais do que o necessário. Aqueles que ficam também sofrem muito e desnecessariamente, porque não sabem que a morte não é o fim. Mas existe um lado positivo. Além de sofrerem desnecessariamente, não sentem a alegria que deveriam ter se conhecessem os factos reais do acontecimento. A mãe que pranteia seu filho, se pudesse vê-lo na insuperável bênção do mundo celeste, talvez ainda se afligisse, mas sua aflição seria por ela, não por seu filho. A morte é, em muitos casos, uma promoção, não uma perda; um benefício, uma recompensa, algo pelo qual devemos ser gratos. Precisamos livrar-nos da antiga concepção, que ainda está arraigada em muitos, que a morte significa permanente cessar da actividade física.

Mas há uma consideração anterior a ser feita. Na morte normal, não resultante de um acidente repentino ou de batalha, a alma revê os eventos da vida passada e é esta revisão que forma a base real de nosso progresso na evolução. Referi-me a isso quando conversamos longamente na Rue de la Ex. Lembra-se que discorri sobre a memória subconsciente, uma propriedade do corpo vital e etérico, que é impressa no corpo de desejos na morte enquanto a alma está revendo a vida passada. Esta impressão forma a base para a vida tanto no purgatório como também no céu. Quando a atenção da alma que passa é desviada por lamentações daqueles que foram deixados para trás, o registo não é impresso no corpo de desejos, e a vida tanto do purgatório como a do céu resultam ambas falhas em seu verdadeiro propósito e, até certo ponto e na devida proporção, a vida passada do homem é perdida. Vimos como os mortos são afectados pela dor dos vivos, não a tristeza serena da ausência, mas a demonstração emocional do desespero. Esta é uma lição delineada para você. No futuro, onde quer que sua vida de serviço o conduza, faça tudo que estiver ao seu alcance para explicar estes fatos, às pessoas, de modo que, com o tempo, esta terrível injustiça para com os mortos cesse. Tudo que puder fazer neste sentido será louvável, pois estará ajudando a evolução e colaborando para que o grande Dia da Libertação fique mais próximo.

- Qual a outra lição a que se referiu?

- Mostrei-lhe uma; creio que recordará melhor a outra se a buscar sozinho.

- Mas eu não compreendo como a memória subconsciente é impressa. Disse que ela é a base para a vida no purgatório e, que de acordo com a intensidade da vida do purgatório, assim será a extensão de nossa conquista sobre nosso passado?

- É exactamente isso.

- No entanto, nas mortes que observei deste lado da linha, não houve nenhuma revisão da vida passada. O Sargento Strew, por exemplo. Quando foi morto, ele simplesmente saiu de seu corpo e lá estava ele. Não houve lamentação ao seu redor e ele não parou para pensar em sua vida passada. Por que sucedeu assim?

- Porque não foi a maneira normal de morrer. A natureza planeja que após a morte haja uma revisão das actividades e dos erros passados, e a vida no purgatório e no céu baseia-se nessa revisão. Normalmente é esse o esquema da evolução, mas o homem, com sua divina prerrogativa de livre-arbítrio e escolha, muitas vezes estraga os planos da natureza, temporariamente, lógico. Normalmente o homem não tem intenção de morrer por violência ou por acidente. A morte nos campos de batalha ou em algum acidente que tira repentinamente o Ego de um corpo jovem e vigoroso, não é o método normal planejado para a raça. Isso interfere com a revisão. A morte por queimadura, como acontece algumas vezes em uma casa ou em um acidente de carro, pode amedrontar e excitar a alma de tal modo, que por um longo período de tempo depois da ruptura verdadeira do cordão prateado e depois que a revisão se tornou impossível, a alma ainda está desesperadamente reagindo ante a cena de sua violenta separação do corpo físico.

- Para aqueles que morrem de comoção por explosão, a revisão é geralmente impossível. No caso do Sargento Strew, ele foi separado de seu corpo imediatamente e não teve consciência do fato, mas mesmo que tivesse, a violência das vibrações do momento impediria essa revisão, mesmo sem a interferência de parentes. Lembre-se que ele viu você imediatamente, e mal havia terminado de o cumprimentar quando se excitou ao ver os soldados mexerem em seu corpo. Contudo, mesmo que você não estivesse lá, não teria havido nenhuma revisão, devido à morte súbita, praticamente acidental. Também as vibrações muito dolorosas que geralmente pairam ao longo das linhas de batalha, e outras diversas razões, que agora não vou enumerar, contribuem para isso. Compreenda como a morte por acidente, violência, ou em batalha é desastrosa, uma vez que interfere no processo normal da Natureza. Contudo, a Natureza é muito poderosa para ser contrariada. Os cursos naturais podem ser alterados e desviados da normalidade, mas não podem ser violados a longo prazo. A Natureza utiliza-se inclusive das anormalidades para alcançar seus objectivos, de modo que quando se totaliza uma conta, pode parecer que o que seria uma vida desperdiçada, não o foi de maneira nenhuma, porque todos os seus componentes foram utilizados. Então, no grande universo de nosso Pai, encontramos a evidência mais maravilhosa de sabedoria por todos os lugares, sabedoria sem limite, sabedoria cujas alturas não podemos medir e cujas profundidades não podemos sondar. "

Jimmie estava olhando para seu amigo enquanto este falava e teve uma nova visão de suas experiências neste maravilhoso país. Pôde ver o corpo-alma de um Mestre enquanto envolto em adoração na Divina Sabedoria e no amor pelo Divino Criador.

Indescritivelmente brilhante era esta linda visão. A pequena cabine resplandecia com a glória que a enchia e com o fulgor da intensa luz projectada em variados tons, desde o puro branco até o violeta. No centro deste maravilhoso esplendor estava o corpo etérico do homem, tendo a cabeça inclinada como se rezasse.

Despreparado para esta visão, Jimmie cambaleou até a parede e pouco faltou para cair de joelhos, mas subitamente lembrou-se das palavras proferidas pelo anjo diante de circunstâncias semelhantes: “Não faça isso.” Por isso, não prostrou-se em adoração, mas permaneceu em reverência e admiração à medida que a glória começou a desvanecer-se e seu amigo, familiar novamente, olhou-o e com as mãos estendidas disse:

- Desculpe-me, amigo. Por um momento estava pensando somente no Pai e no Seu Divino amor, Sua maravilhosa clemência para connosco e a sabedoria com a qual Ele faz com que nossa fraqueza e nossos fracassos o sirvam.

- Agora, vou deixá-lo. Pratique os exercícios que lhe dei. Procure as outras lições e, ao prosseguir no caminho, que a bênção do Pai caia sobre você.

Lentamente a cabine ficou sombria e escura, o movimento do navio tomou-se perceptível. Jimmie sentiu as beiradas da cama e a maciez das cobertas, e com sua mão estendida tocou a solidez da parede. Estava acordado.

 

CAPÍTULO VIII

UM ESTUDO DAS AURAS

Jimmie não dormiu mais aquela noite. Permaneceu acordado, ponderando sobre as coisas que tinham acontecido e, gradualmente, teve a convicção de que a maior de todas as lições não lhe havia sido relatada, mas havia sido deixada para que a descobrisse por si mesmo.

Começou a raciocinar. Por que havia sido escolhido e presenciado tantas coisas maravilhosas? Não foi para gratificar sua curiosidade, isto era certo. Não foi para que, de vez em quando, pudesse consolar alguém pela perda de um ente querido, embora este fosse, sem dúvida, um dos propósitos menores. Qual poderia ser a grande ideia que estava incluída em tudo isso?

Não era porque ele podia curar os doentes, embora o Sr. Campion tivesse explicado muito sobre a cura das doenças físicas ao trabalhar sobre o corpo vital. Não era para que pudesse contar a história de suas aventuras na Terra dos Mortos que Vivem, pois havia sido especialmente advertido a não fazê-lo, uma vez que experiências espirituais não admitem repetições e, além disso, foi-lhe dito que as pessoas não acreditariam nele.

Recordava que o maior Curador que jamais existiu, até onde podia lembrar-se, nunca se afastou de Seu caminho para curar. Havia curado muitos, é verdade, mas somente, por assim dizer, incidentalmente, curando só aqueles que O haviam procurado e cujos pedidos foram mais ou menos insistentes. Sendo assim, o que deveria de fazer? Para que grande Propósito havia sido instruído?

Curar não era a grande razão, como também não o era confortar os aflitos. Educar sua própria personalidade como um fim em si mesmo estava fora de cogitação - pois nisto estaria envolvido o elemento egoísmo. Devia ser algo que ele precisava transmitir a outros - isto tornava-se claro para ele - assim, começou a raciocinar por analogia.

Suponhamos, pensou, que fosse um homem rico, o que poderia fazer com seu dinheiro para conseguir um bem maior? Poderia dar dinheiro aos necessitados; por outro lado, dar dinheiro aos necessitados nem sempre é sábio. Pode causar mais problemas que resolvê-los.

Poderia construir fábricas e dividir o lucro com os empregados. Isto seria melhor. Assim estaria ajudando os outros a se ajudarem. Quando Cristo esteve na terra Ele realizou muitos milagres e o Poder que pode multiplicar alguns pães e peixes até serem suficientes para alimentar milhares de pessoas, poderia, sem dúvida transformar pedras em ouro. Por que então, Cristo não terminou com a pobreza dando ouro a todas as pessoas pobres que Ele encontrou?

Cristo, raciocinava Jimmie, avaliava a matéria do ponto de vista do grande Espírito Solar que Ele era. Sabia que estas pessoas eram espíritos em evolução, cujo progresso - desde a dor e a infelicidade dos estágios inferiores da evolução até a grande alegria, felicidade e o esplendor das esferas superiores - dependia somente do progresso espiritual e nunca, de forma alguma, do acúmulo de dinheiro ou de prosperidades. Sabia que o progresso espiritual é mais frequentemente retardado pelas posses que, estando à disposição e sendo consideráveis, parecem a seu dono as coisas mais preciosas que a vida tem a oferecer. Por essa razão, Ele deu-lhes o que realmente tinha maior valor - ajuda, estímulo e ensinamentos dentro de determinadas linhas de conduta que, se observados, proporcionaram a única recompensa real e permanente. Em outras palavras, Cristo ajudou Seus seguidores a se ajudarem através do caminho da realização espiritual.

Esta vida, percebia Jimmie, tomada como um todo desde a primeira diferenciação do espírito individual dentro do grande ser de Deus antes de começar sua longa peregrinação, até o dia final da libertação quando o aspirante pode pronunciar as palavras gloriosas: “Está consumado”, assemelha a uma escola onde aprendemos nossas lições. A mesma lei rege os dias do nosso período escolar, isto é, ninguém pode aprender nossas lições por nós. Um mestre só pode ajudar, incentivar, conduzir e apontar o caminho. A aquisição verdadeira do conhecimento deve advir do trabalho realizado por nós mesmos.

É um fato real que a criança na escola pode ser forçada a estudar por medo ao castigo; perguntas e exames podem demonstrar até onde ela se aplicou. Mas a punição e o temor que a acompanha não levam a nada, excepto estimular uma mentalidade indiferente ou preguiçosa. O conhecimento adquirido deve ser o resultado do próprio esforço da criança, independente do incentivo que a tenha motivado.

Assim, prosseguindo na analogia, progresso espiritual, para a maioria da humanidade, é o resultado do trabalho de seu próprio espírito, uma vez que eles ignoram totalmente que estão na escola e desconhecem a lei do crescimento espiritual. Por essa razão, estão destituídos do verdadeiro incentivo espiritual que os conduz ao progresso.

A educação de uma criança que estuda somente sob ameaça de punição, é de qualidade muito pobre, insuficiente comparada àquela obtida por quem sabe que está recebendo um treino que o ajudará a progredir no mundo e, consequentemente, esforça-se por estudar e ajudar o professor. Mas esta educação, embora seja superior à primeira, fica ainda num estágio inferior comparada àquela obtida pela criança que tem uma verdadeira sede por conhecimento e que não precisa do chicote do medo, nem do incentivo próprio para prosseguir.

O mesmo acontece com o crescimento espiritual. No início é alimentado pelo medo - medo da morte, da eternidade e todos os outros temores que operam na humanidade.

Este estágio de crescimento espiritual é excessivamente lento e, vida após vida, demonstra muito pouco adiantamento. Quando o motivo é o interesse próprio, o progresso é um pouco mais rápido. Contudo, somente quando o “Eu” é esquecido e o homem trabalha por amor é que o progresso advém mais rapidamente. Então consegue alcançar o estágio descrito na parábola do Filho Pródigo, o qual estando ainda muito longe, foi avistado pelo Pai que saiu ao seu encontro.

Jimmie ponderou todos esses factos com cuidado. O grande propósito não era a cura ou o consolo. Estes eram sub-produtos, por assim dizer. O grande propósito devia estar ligado a ajudar as pessoas a se ajudarem. A chave do problema evidentemente estava escondida aí.

Mas, como ajudar os outros a se ajudarem? O progresso espiritual pode obter-se como a educação, somente pelo esforço do próprio espírito. Mas a realização, quando feito somente sob o incentivo da lei de compensação e quando o resultado não é incorporado ao espírito até depois da morte, é muito lenta.

A criança na escola, mesmo que não queira aprender, pode ver e compreender geografia e o livro de alfabetização, cujas listas de nomes e palavras precisa decorar. O espírito, aprendendo sob o chicote das grandes Leis Gémeas - de Renascimento e de Consequência - não compreende e está apenas aprendendo cegamente.

Um conhecimento das leis de Renascimento e de Consequência seria de grande ajuda para muitos. Mostrar-lhes-ia o que estavam fazendo e o por que desse procedimento e, em muitos casos, aceleraria maravilhosamente o progresso espiritual.

Jimmie sentiu que esta não era a verdadeira resposta ao seu problema, mas também avaliou que era um começo em direcção à resposta e tinha a certeza de que, se fizesse o melhor para divulgar o conhecimento que havia adquirido - não os detalhes de suas aventuras mas o grande facto de uma grande e maravilhosa vida espiritual acompanha-nos e rodeia-nos o tempo todo, e que ao morrermos simplesmente passamos do nosso invólucro físico para uma gloriosa liberdade - se fizesse o máximo para divulgar este parapeito, bem perto de onde esse homem estava. Ele não se mexeu nem disse nada, mas permaneceu tão calmo como se fosse um veterano de vinte anos de trabalho nas trincheiras. Mas pareceu a Jimmie, que o observava, que ele de repente estava envolto em uma nuvem cinza, como por uma névoa. Isto foi modificado por uma considerável cor escarlate ao redor da cabeça, o que demonstrou que o homem estava com medo, embora fosse o medo de um homem corajoso, pois também sentia-se desgostoso consigo próprio por estar com medo. Mostrava também que, embora o homem sentisse medo, mesmo assim possuía perfeito controle sobre si mesmo e não se permitia mostrar esse temor, o que provou a Jimmie ser ele um dos mais corajosos entre os corajosos.

O primeiro vislumbre que Jimmie teve da aura não foi muito claro. Ele teve a impressão que seus olhos repentinamente se anuviaram por um pouco da humidade que, acreditava, podia explicar a existência da névoa cinza, mas a aparição do escarlate o confundiu. Por vários dias essa visão não se apresentou a ele, mas depois, ela tomou-se cada vez mais frequente, especialmente após compreender o que ela realmente era e começou a prática de poder usá-la. Mais tarde descobriu que podia olhar para os homens e determinar se estavam com medo ou não; se estavam irados ou não, e até que grau.

E mais tarde ainda, começou a reconhecer a diferença entre a aura e o corpo vital, o que não conseguia distinguir no início, excepto que sabia que a aura ficava consideravelmente fora do corpo vital em sua extensão.

Durante sua viagem, ele havia exercitado sua faculdade nascente nos membros da tripulação e naqueles com quem, tinha a certeza, jamais se encontraria posteriormente. No entanto, isto tinha sido insatisfatório, pois os membros da tripulação não demonstravam muita variedade na cor de suas auras e a cor que possuíam, era geralmente de uma variedade turva e confusa. Mesmo quando ocorriam pequenas brigas entre eles, jamais mostravam o puro escarlate, mas só um vermelho pardacento, sujo, bastante mesclado com outras cores.

 

CAPÍTULO IX

UMA EXPERIÊNCIA COM ESPÍRITOS DA NATUREZA

Os meses seguintes da vida de Jimmie foram como sonhar acordado, uma vida muito ocupada pelas exigências de seu trabalho e matizadas por uma curiosa sensação de que algo estava para acontecer, uma sensação de inquietação, de espera, de pressentimento. Ele escrevia para Louise regularmente e recebia respostas que eram aparentemente, satisfatórias a julgar pelo número de vezes que lia e relia cada carta. Em sua vida “de sono”, que cada vez se tomava mais distinta e real, ele progredia rapidamente.

Todas as noites soltava as amarras e elevava-se para o grande mundo que está invisível ao nosso redor, e todas as vezes que assim fazia ficava mais profundamente impressionado com a exaltação maravilhosa que a “atmosfera” daquele mundo produzia.

Naturalmente, a maioria desta impressão é impossível descrever porque não é para ser comunicada pela linguagem, muito menos pela palavra escrita. Só me ocorre uma maneira pela qual meu sentimento possa tomar-se descritível para aqueles que lerem esta pequena história. Algum dia tiveram um sonho muito real no qual passaram por uma experiência ou aventura maravilhosa? Não se recordam, de um modo vago e muito imperfeito, da mágica “atmosfera” daquele país das fadas que sonharam ter visitado? Não se recordam de como, ao tentar descrever esse sonho, suas palavras eram frias e incolores? Não se recordam de que o facto principal que os entusiasmou sobre o sonho não foi a aventura em si, mas o fascínio estranho, maravilhoso, excitante do acontecimento? Fascinação não é a palavra certa mas, como disse não existe na nossa língua um termo adequado para descrever esses momentos, muito menos a sensação estranha, que sentimos naquele lindo país. É uma sensação que precisa ser experimentada para ser compreendida. Não é possível retratá-la a alguém que ainda não a tenha experimentado. Um homem cego de nascença pode ouvir nossas palavras ao descrevermos a beleza da cor e o esplendor do pôr-do-sol mas para ele essas palavras nada significam. Podemos referir-nos a uma “exuberância de cores” quando temos em mente uma exposição maravilhosa de cores da atmosfera no céu ocidental a medida que o sol se põe.

O homem cego sabe o que “exuberância” significa e tem uma ideia académica do que seja uma cor; mas da combinação, que está tão clara em nossa mente, ele não tem e não pode ter nenhuma concepção.

Assim, para aqueles que não são capazes de visitar aquelas gloriosas regiões, a descrição delas parece-lhes fria. E, o que é mais triste, os fatos que estão fundamentados na familiaridade com essas regiões e suas leis parecem-lhes tolices.

É apenas outra comprovação da afirmação bíblica de que “a sabedoria de Deus é tolice para os homens”. Estamos ainda tão imergidos no egoísmo, mesmo aqueles que mais se orgulham de seu altruísmo, que quando nos deparamos com a verdadeira sabedoria, ficamos como o homem na parábola, “sem palavras”.

Jimmie seguiu fielmente os exercícios matutinos e vespertinos dados a ele pelo Irmão Maior, pois agora podia alcançar sua filosofia e sentia cada vez mais seu extraordinário efeito. Há muito tempo havia parado de fumar e de comer carne. Estas suas renúncias eram fonte de intermináveis indagações por parte de seus companheiros, que não podiam compreender como uma pessoa sã podia parar de comer carne excepto provavelmente, para curar o reumatismo, enquanto parar de fumar era explicado por uma única palavra, “fanatismo”.

Gostava de ir à igreja, não pelas fortes vibrações espirituais que estavam ali presentes, mas também para praticar a leitura das cores nas diversas auras. O sacerdote da igreja, à qual ele geralmente ia, julgava que seus sermões eram a principal atracção e interpretou a assistência regular de Jimmie como um elogio para si. Mas Jimmie sabia como todos os ocultistas sabem, que aos domingos as vibrações por toda a terra são diferentes e muito melhores do que as dos outros dias da semana. Jimmie havia visitado, em algumas de suas excursões, terras selvagens e havia observado os diversos ritos religiosos primitivos, e sentia-se em condições de comparar a vibração de lá com a que prevalecia em seu próprio país aos domingos. O grande contraste produziu-lhe a impressão de que a raça ocidental está às vésperas de algo “diferente”.

O tempo transcorria em trabalhos, exercícios, em diversas actividades sociais e cada vez mais em seu absorvente e interessante desenvolvimento espiritual. O terrível desastre russo começou a circular nas notícias diárias e cada vez mais nos pensamentos e palavras dos homens. Às vezes, algumas dessas coisas Jimmie podia observar quando fazia excursões durante suas horas de sono. Mas era dificultado pelo facto de não saber ainda deixar seu corpo conscientemente; portanto, não tinha total poder para escolher o lugar onde suas saídas o levariam. Na verdade, se pensava objectiva e profundamente antes de dormir, conseguia determinar a localidade de sua visita, mas proceder assim, requeria interesse nisso e como nas ocasiões em que visitou o país do antigo Czar, ele não fora capaz de entender nada do que ouvira, esse interesse era mais ou menos moderado quando comparado à saudade intensa de passar seu tempo na linha de batalha com seus antigos companheiros, ajudando de vez em quando um deles a passar para o outro lado, o da morte.

A pergunta que ocorrerá a muitos neste momento, uma indagação perfeitamente natural, é esta: Por que Jimmie não usava seu poder recém descoberto para visitar Louise, uma vez que estava realmente apaixonado por ela e era correspondido?

A razão era dupla. Em primeiro lugar, Jimmie vinha de excelente família e sua educação quando menino foi exemplar, por isso, teria sido impossível para ele ter usado qualquer poder oculto para espiar sua bem-Amada. A outra razão, que funcionaria se a primeira não estivesse presente, era a advertência que o Sr. Campion lhe havia fortemente assinalado, isto é, que a lei oculta não permite o uso do poder oculto para nenhum motivo de curiosidade ou de egoísmo.

Quando uma pessoa está desenvolvendo capacidade de ver nos outros planos e poder viajar por “países estrangeiros”, precisa ter prática. Por esse motivo, é lhe permitido tanto observar as auras e o jogo de cores áuricas nos desconhecidos, como também viajar, examinar terras distantes e observar pessoas e suas vidas, mas unicamente com o objectivo de estudar e praticar. O abuso do poder espiritual acarreta um castigo peculiar e terrível. Mas, excluindo qualquer temor de punição, seria totalmente estranho e detestável à natureza de Jimmie tentar espiar sua namorada. A ideia nunca lhe ocorreu, pois ele era, acima de qualquer dúvida, um cavalheiro.

A única maneira que lhe restava para comunicar-se honradamente com ela, era enviar-lhe um chamado aos planos superiores, mas ele havia prometido não proceder assim, pois ela estava sempre muito ocupada e dormia a intervalos regulares. Se ele a chamasse, ela viria, mas o chamado poderia acontecer exactamente no momento em que sua atenção fosse necessária para alguma operação crítica - que poderia, talvez, custar uma vida. Jimmie havia prometido assim proceder e, sendo um cavalheiro, lealmente cumpria sua promessa. Por conseguinte, seu único meio de comunicação era através do mesmo correio do qual todos namorados americanos tinham que depender.

Mas esta regra não era aplicada em relação a Marjorie. Neste caso, ele tinha liberdade de chamá-la quando chegava ao outro lado e, em pouco tempo, Marjorie aparecia, dançando plena de alegria e felicidade, e os dois empreendiam um longo “deslizar”, às vezes percorrendo a metade do mundo.

Foi Marjorie que o apresentou aos Espíritos da Natureza, dos quais ela era uma das principais favoritas. Assim, Jimmie conheceu os gnomos, os duendes e até mesmo as fadas. Soube que havia muitas outras tribos destas estranhas criaturas; algumas evitavam o homem quanto lhes fosse possível e outras lhe eram activamente hostis.

Como regra, alguns que encontrava em seus passeios eram seres gentis e tímidos, outros gentis sem serem tímidos. Aprendeu a gostar muito dos duendes que sempre encontrava além do caminho nas regiões das florestas. Adorava conversar e brincar com eles, que aprenderam a amá-lo também, pois possuem uma natureza muito carinhosa embora não acreditem nos homens, porque as vibrações do homem comum são muito grosseiras e desagradáveis a um ser de natureza sensível.

As fadas eram mais difíceis de conhecer, mas, com a ajuda de Marjorie, fez amizade com algumas delas, que costumavam visitá-lo quando estava sozinho nas florestas.

Esta fase de sua vida extra física foi repleta de aventuras, como um extenso conto de fadas. Mas estou mencionando agora esses fatos com um único intuito, demonstrar o tremendo dínamo de energia que é a vontade humana.

Jimmie tinha poucos dias de férias, mas, de vez em quando, tinha permissão para sair do acampamento e embrenhava-se nas florestas que podia alcançar depois de uma curta viagem de trem. Gostava de ir para a floresta, pois era aí que aqueles pequenos seres podiam ser encontrados, os quais depois de descobrirem que ele era inofensivo, costumavam agrupar-se ao seu redor todas as vezes que o encontravam sozinho, e juntos passavam momentos alegres.

Foi numa desta excursões, quando ainda não havia penetrado muito na floresta, que se tomou consciente de algo errado com as vibrações no éter. Ele não ouviu ninguém chamar, mas, de alguma maneira, pressentiu que algo grave ocorria e resolveu investigar. Não demorou mais que alguns minutos após ter sentido a perturbação etérica, quando viu em uma pequena folha de grama um de seus amigos duendes tentando defender-se dos ataques de cinco seres muito repugnantes. Não tentarei descrevê-las, limito-me a dizer que eram aparentemente semi-humanos, semi-animais. Evidentemente não eram Espíritos da Natureza inofensivos, pois o pequeno duende estava em apuros. Ele não se defendia com nenhuma arma, mas fazia movimentos em direcção àquelas criaturas e ao fazê-los, elas encolhiam-se como se o duende as houvesse tocado. Logo em seguida, porém, elas recuperavam-se e o atacavam novamente e Jimmie percebeu, embora esta fosse sua primeira experiência nesse sentido, que estava presenciando um combate no plano etérico.

Quando Jimmie se aproximou, o duende tentou romper o círculo, mas, sem dúvida alguma, parecia estar realmente debilitado e três desses estranhos seres bloquearam a passagem e fizeram-no retroceder.

Não tocaram o duende nem este os tocou, contudo, de alguma maneira, existia um contacto muito real, e Jimmie podia perceber, pelos movimentos de seu pequenino amigo, que este estava muito aflito e em grande desvantagem.

Não houve a mínima hesitação no agir de Jimmie. Jamais havia visto uma luta nesse plano de vida, mas testemunhou que existia tal fato como uma disputa de forças entre grupos diferentes. Evidentemente, isso era o que estava presenciando agora e intuía porque o pequenino duende estava levando a pior.

No outro plano, uma luta é uma luta, não de golpes ou do que corresponderia à força física, mas da vontade. Também não é inteiramente da vontade. Por exemplo, um certo número de espíritos, com tendências malignas pode estar atormentando alguém, mas quando um dos “Mestres” aparece e coloca um fim à conten­da, não o faz pela força física nem por um exercício supremo de uma vontade mais forte, mesmo que, naturalmente, possua essa vontade mais forte. Seu poder para deter a crueldade é o resultado de uma vontade mais forte combinada à sua posição mais elevada na escala dos seres, o que lhe confere uma aura cujas vibrações são tão fortes, que um ser, cujas vibrações não sejam tão boas ou positivamente más, não consegue suportar o elevado grau vibratório da presença do “Mestre”. Este é um exemplo extremo, naturalmente, mas funciona em todos os planos da natureza onde as vibrações mais elevadas podem ser sentidas, e actuariam com pleno poder no plano físico não fosse o facto das vibrações superiores aqui estarem tão embaçadas pela carne que perdem sua força e só podem actuar lentamente. Isto nos faz recordar o verso de um hino que diz: “Onde tu estás presente, o mal não consegue estar”. Esta afirmação é verdadeira em todos os casos onde o bem é colocado em contacto com o mal, decorrendo o efeito de acordo com o grau de diferença entre as intensidades do bem e do mal.

Os duendes são uma raça delicada, agradável, pequenina, mas são Espíritos da Natureza, e, embora inocentes e sensíveis em alto grau, sua inocência não é o resultado de uma luta positiva e demorada contra a tentação mas assemelha-se mais à inocência da infância, portanto, não é uma fonte de poder. Em muitos aspectos são incrivelmente semelhantes às crianças, com seus afectos, gostos, aversões e com uma grande incapacidade de defesa contra a agressão.

Assim, este pequeno duende, que estava lutando tão bravamente e em terríveis condições, não possuía a força que seria sua, se ele fosse o produto de uma longa evolução adquirida através de sofrimento e de educação no plano físico. Assemelhava-se a uma criança pequenina e desamparada, lutando brava mas inutilmente contra um bando de lobos que só estavam contidos porque o con­sideravam mais forte do que realmente era.

Eis a situação quando Jimmie surgiu em cena. Uma exclamação aguda irrompeu dele, e em poucos passos, colocou-se ao lado do duende e enfrentou os terríveis elementais que o estavam atacando. Jimmie simplesmente olhou para eles, estendeu o braço e disse “Vão embora” e usou sua imaginação e vontade para arrebatá-los e desintegrá-los. Olharam-no horrivelmente de soslaio, vociferaram e rugiram, mas a vontade humana, resultado de longa evolução, era demasiado forte para eles e simplesmente sumiram de vista, como um quadro que se tira de cena.

O duende tinha caído em um monte quando Jimmie interveio na luta, mas o poder de recuperação no plano etérico é rápido, e os elementais mal haviam desaparecido quando ele se levantou de um salto, jogou-se nos braços de Jimmie e colou-se a ele soluçando incoerente e prolongadamente como uma criança. Como sua altura era de apenas uns dezoito centímetros, não é de se estranhar que Jimmie experimentasse a mesma sensação de alguém que tivesse salvo uma criança de um cão feroz.

Esta foi a primeira vez que um duende o tocou, pois são muito tímidos. Mas agora que sua amizade tinha sido provada, este duende em particular, apegou-se a ele, acariciando seu rosto, seu cabelo enquanto dizia continuamente:

- Jimmie, meu amigo; Jimmie, meu amigo.

Andaram juntos, por alguns minutos e, uma vez que o duende não pensava nada por ser uma entidade etérica, Jimmie simplesmente o segurava como seguraria uma criança, tentava confortá-lo com todo o carinho, ajudando-o a recuperar-se de seu susto. Estavam assim quando uma multidão desses seres minúsculos surgiu dançando da floresta mais densa e ficou a observá-los.

 

CAPÍTULO X

UMA CRISE DE AMOR

Quando um grupo de duendes, à medida que surgiam da floresta, contemplou essa visão sem precedentes e se deparou com Jimmie carregando seu pequenino amigo duende em seus braços, demonstraram todos uma grande excitação.

Tão natural e exactamente como agiriam os seres humanos, eles chegaram à conclusão de que, pelo menos, um duende tomara-se um traidor de sua gente e de seus familiares. Rodearam Jimmie, permanecendo em uma certa distância e começaram a chamar por seu pequeno companheiro em sua própria língua, que Jimmie reconheceu ser uma espécie de língua universal, mas, mesmo assim, não podia inteirar-se do que eles diziam.

Porém, seu pequeno amigo compreendeu e demonstrou inconfundível indício de tristeza. Finalmente, quando as acusações se tornaram ásperas demais para suportá-las, ele pulou dos braços de Jimmie e correu directamente para o duende que parecia ser o chefe do grupo. Então, começou a explicar o ocorrido. Jimmie pôde segui-lo perfeitamente, embora ele falasse mais rápido do que qualquer francês que já ouvira falar. Os poderes de gesticulação da criaturinha eram maravilhosos.

Representada diante dele e acompanhada pela apresentação verbal mais rápida que jamais ouvira, Jimmie se deu conta de toda aquela aventura. O pequenino duende daria um incomparável actor se pudesse ser atraído para um palco e possuísse um corpo material. A surpresa com os horríveis elementais; a busca desesperada por onde escapar; a grande luta e o terrível desgaste que rapidamente abria caminho para a certeza da morte; as contorções e os gestos agressivos do círculo hostil ao seu redor; o desespero que se apoderou dele quando cada tentativa para escapar era impedida; depois o grande alívio quando, repentinamente, este grande gigante humano, com essa incrível força de vontade humana colocou-se ao seu lado e tomou sua defesa nessa luta desigual.Vejam”, gritou o duende finalmente, “está tudo bem. Ele é meu amigo. Vejam.”

Neste momento, seu entusiasmo apoderou-se dele e, com um salto enorme, pulou exactamente no ombro de Jimmie e começou a saltar de um ombro para o outro dando, de vez em quando, um tapinha amoroso na cabeça de Jimmie cada vez que saltava por cima dela. Por ele ser uma entidade etérica, isso não provocou nenhum incómodo a Jimmie e era evidente que o grupo de duendes divertia-se imensamente com isso.

Aproximaram-se um pouco mais e Jimmie estava consciente da mudança de atitude de todos eles pelos olhares amistosos que lhe dirigiam, pelo sorriso constante com o qual o cumprimentavam e pelo bom humor com que falavam com seu activo amiguinho.

Geralmente as vibrações da raça humana são ofensivas para esses pequenos seres pelo fato que a maior parte dos humanos, devido à sua linha habitual de pensar e agir, acumula em seus corpos etéricos grande quantidade de matéria etérica totalmente indesejável.

Em grande parte, isto também é aplicável a seus corpos de desejos e como os duendes estão no limite entre os dois reinos, são muito afectados adversamente por essa razão.

Jimmie não sabia exactamente como proceder e, por isso, fez o que lhe pareceu ser o mais natural possível, sentou-se em um tronco e esticou suas pernas. Um dos duendes mais corajosos, após várias simulações, correu e pulou sobre seus pés tocando um deles levemente com seu próprio pé. Descobrindo que mesmo assim, ele não se machucava, pulou novamente, desta vez aterrando no pé de Jimmie e imediatamente pulando de volta.

Entretanto, muitos deles haviam subido ao alcance de seus braços e estavam falando sobre ele nas suas vozinhas estranhas e agudas, enquanto ele sentia muitos toques em suas costas e pequenos beliscões em seu cinto e camisa. Isso era perfeitamente possível mesmo que esses pequeninos seres não estivessem no plano físico. Esta incongruência aparente só ocorreu a Jimmie algum tempo depois, pois quando vemos que uma coisa realmente existe, aceitamos o facto sem questionar, jamais parando para considerar que, de acordo com todas as teorias e razões, o facto deveria ser apenas uma fantasia.

- Diga-me, Buster - Jimmie disse para o pequeno duende que ele havia salvo dos elementais - Qual é o problema com seus amigos? Parece que estão com medo de mim. Diga-lhes que não os machucarei.

- Oh, eles são bobos! Estão com medo. Você não vai machucá-los. Você é um amigo.

Começou uma arenga apaixonada em sua própria linguagem e o resultado foi que três duendes vieram e sentaram-se nas botas de couro de Jimmie, enquanto alguns outros aproximaram-se até onde seus braços podiam alcançar, mas percebia-se que estavam prontos para saltar a qualquer momento.

Jimmie sentou-se imóvel, não mexia um só músculo, excepto para falar com Buster, cujo verdadeiro nome ele perguntou em vão, pois a pequena criatura parecia estar orgulhosa do nome que carinhosamente Jimmie lhe dera e a todas as perguntas contestava que Buster era seu nome e que não tinha outro.

Aos poucos a conversa e as garantias de Buster surtiram efeito e o resto dos duendes começou a perder o medo desse ser humano que salvara seu companheiro de um destino tão horrível. Aproximaram-se e demonstraram mais interesse na conversa e Jimmie aproveitou para perguntar a Buster o que teria acontecido a ele se os elementais tivessem ganho a luta. Não tinha a certeza se a morte era possível para um ser que não possuísse corpo físico. Mas o grande alívio e gratidão que Buster havia demonstrado, tomou claro que um resultado adverso do combate teria sido, pelo menos, altamente desagradável para o duende.

Mas Buster não queria pensar no que poderia ter acontecido. Aparentemente não gostava de usar sua imaginação. Como uma criança que só deseja brincar, tomava-se impaciente com qualquer tentativa de fazê-lo pensar seriamente e só se interessava pela diversão na qual estivesse engajado no momento. A irrespon­sabilidade parecia ser a nota-chave de seu carácter e a concentração sobre qualquer coisa, a não ser que estivesse interessado, era-lhe aborrecida. Jimmie finalmente desistiu de tentar e decidiu tornar-se amigo do resto do grupo.

Nisto foi muito bem sucedido, pois os duendes, de imediato, perderam o medo dele e colocaram-se ao alcance de seus braços sem observá-lo, pois não receavam mais qualquer movimento hostil.

- Buster - disse Jimmie ao final - diga-me por que seu povo tinha medo de mim. Que mal poderia fazer-lhes?

- Olhe - respondeu Buster - sua força de vontade é muito vigorosa. Essa é a razão. Eles não o conheciam como eu o conheço.

Só depois de muitas perguntas foi possível entender a razão da timidez dos duendes, e Buster, com a ajuda de outros que tomaram parte na conversa, finalmente esclareceu Jimmie sobre a causa da má vontade de seu povo em relação à associação com mortais.

Parece que não só as vibrações humanas são geralmente muito desagradáveis aos duendes, mas também a força de vontade humana é tão vigorosa que quando é inteligentemente direccionada, frequentemente são incapazes de resistir a ela. Isso os torna temerosos da proximidade dos homens, pois alguns seres humanos são dotados de uma ligeira clarividência e, algumas vezes, os clarividentes não são os membros mais avançados da raça. Assim, um mortal de grau inferior, com um pouco de poder clarividente, pode tornar-se muito desagradável para os duendes.

Também foi informado que o contacto com um ser humano lhes dá, de certa forma misteriosa, um acréscimo de poder de se tornarem desagradáveis, se esse mortal assim o desejar. Por essas explicações, Jimmie pôde compreender por que os duendes ficaram tão horrorizados ao verem Buster em seus braços e a amizade que reinava entre os dois.

Desde então, toda a reserva foi posta de lado e o grupo imenso de duendes divertia-se pelo conhecimento adquirido sobre o homem. Subiam nele, sentavam-se em sua cabeça, pulavam em seus pés e foi com considerável dificuldade que Jimmie conseguiu parar um e fazer-lhe algumas perguntas. Era como se sua inteli­gência os fizesse semelhantes às crianças - eram capazes de falar e de compreender uma linguagem simples, mas totalmente incapazes de qualquer esforço mental como acontece com uma criança de seis ou sete anos. Mas também como as crianças, seu amor e confiança, uma vez dados, eram sem reservas.

Jimmie passou uma tarde muito agradável com seus amiguinhos até que a aproximação de alguns colhedores de frutos da floresta alarmou-os e eles fugiram depois de lhe fazerem prometer outra visita. Havia chegado à conclusão de que para obter maiores e reais informações sobre os duendes, deveria buscar outra fonte além deles. Era a primeira vez que entrava em contacto com os Espíritos da Natureza ou elementais. Resolveu averiguar mais sobre eles, uma vez que era evidente que ao encontrá-los vislumbrou outras das mansões da Casa de nosso Pai, que está tão plena de maravilhas.

Quando os duendes sumiram, regressou à sua casa caminhando lentamente e repassou em sua mente as coisas que escreveria em sua próxima carta a Louise e pensando um pouco, também, como ficaria feliz quando ela voltasse novamente para casa por a guerra ter terminado e a paz finalmente declarada. Ele teria que trabalhar muito para compensar o tempo perdido e ganhar o dinheiro para adquirir a casinha que tanto queria. E também a Grande Obra não deveria ser esquecida, pois precisava planificar, de alguma maneira, a forma de alcançar o maior número possível de pessoas que estão tão ávidas por uma migalha de conhecimento espiritual, e que, frequentemente, são alimentadas com pedregulhos em lugar de migalhas. Afinal, o mundo era um bom lugar para viver, sobretudo para quem quiser trabalhar, e começou a sentir a sensação de alegria, que é a recompensa de todo trabalhador zeloso, pela qual se pode imaginar a bênção que há-de ser a parte dos grandes Irmãos da Luz que empregam sua energia no serviço pela humanidade, renunciando ao descanso e à própria paz no céu para servir.

Enquanto retomava, recapitulou tudo como em uma espécie de sonho, tão fascinado estava pelas esperanças e planos que havia feito e pelos castelos no ar que havia construído. E, através de tudo isso, corria aquela perigosa veia de vaidade que, com tanta frequência, se insinua juntamente com outras e mais grosseiras formas do mal e que deveríamos esforçar-nos por lançar fora. Ainda não tinha consciência que era vaidade, mas, se tivesse parado para analisar, perceberia que todos os seus sonhos estavam firmados naquilo que ele faria, no serviço que ele executaria, e que aí faltava aquela grande qualidade do trabalhador devotado, isto é, um agradecimento ao Mestre por ter-lhe dado a oportunidade de servir.

É a diferença subtil entre a alegria louvável do serviço e o orgulho injustificável do serviço que, com frequência, faz nossos depósitos na tesouraria celestial serem de humilde prata ao invés de régio ouro.

Mas Jimmie não tinha consciência deste sinistro contexto que corria através da urdidura de seus sonhos. Apoiava-se na felicidade que esperava possuir e também na possibilidade de poder voltar para a França antes do “espectáculo” terminar, pois cobiçava uma das medalhas de mérito e estava decidido a obter urna ainda que tivesse de capturar, sozinho, todo um exército alemão. Neste momento, não podia deixar de sorrir para si mesmo, pois sua imaginação apresentava-lhe quadros onde conduzia à sua frente toda uma companhia de “Fritzies”, e com esse sorriso, voltou para a terra novamente.

Foi um Jimmie feliz e entusiasmado que regressou ao quartel naquela noite, cantando uma canção que havia sido uma das favoritas nas trincheiras e, literalmente, estava borbulhando de esperança e irresponsabilidade. E lá estava, sobre sua mesa, uma carta da França, de Louise.

Pegou-a rapidamente e sentiu uma pequena inquietação por ela ser tão leve, mas esta impressão foi semiconsciente quando rasgou o envelope em sua ânsia de saber o que a carta continha.

Seu rosto transformou-se ao ler as primeiras linhas e a carta pendeu de suas mãos. Não disse nada, mas apoiou-se na parede. Depois de alguns minutos apanhou a carta do chão e leu-a outra vez. Era cruelmente curta.

“Prezado Sr. Westman”, dizia, “estou prestes a voltar para casa no próximo navio e escrevo-lhe para que não mais envie cartas para a França. Pensando melhor estou convencida que nosso compromisso não foi o resultado de um conhecimento suficientemente longo, assim, deixo-o livre e penso que seria melhor deixar o caso terminar aqui.

Espero não receber mais cartas suas e tenho a certeza que respeitará meus desejos e que irá esquecer que eu, algum dia, entrei em sua vida. Com os melhores votos por sua felicidade futura, etc.”

Jimmie sentiu-se atordoado. As outras cartas que recebera de Louise eram geralmente curtas, pois sabia que ela trabalhava muito e desculpava-se por isso, mas, naquelas cartas curtas, quase notas, ela jamais havia escrito uma palavra de arrependimento pelo compromisso que tinham assumido. Motivos de toda espécie passaram por sua mente, mas eram rejeitados por serem indignos dele ou de Louise.

Talvez houvesse encontrado alguém a quem amasse mais. Essa era uma possibilidade, admitiu para si mesmo, mas não explicava o tom lacónico e a rispidez da carta. Talvez tivesse - Oh!

Não podia acreditar que ela realmente tivesse escrito o que transmitiu. No entanto, se não escreveu o que realmente passava por sua mente, por que escreveu?

Não era obrigada a escrever. Não havia uma só lei que a forçasse a escrever. Com certeza não podia estar zangada com ele, pois sabia que ele tinha sido obrigado a obedecer ordens e que deixara a França contra sua vontade. Estavam em tempo de guerra, ordens eram ordens e Louise sabia disso tanto quanto ele, pois ela estivera próxima à frente de batalha onde homens morriam todos os dias devido a estas mesmas “ordens”.

Quanto mais pensava no assunto, mais percebia o quanto seu amor por Louise era um sentimento muito profundo e muito forte. Recordava-se bem, da maneira gentil e bondosa com que ela sempre o tratara; as pequenas coisas que fizera por ele quando se encontrava desamparado; como ela permanecera acordada, embora necessitasse tanto desse sono, para ler-lhe algo quando o nervoso pelo choque da convulsão o atormentava. Certa vez quando estava deitado, sem muita dor, mas quase gritando devido ao horror daquele nervosismo dilacerante, ela sentara-se ao seu lado colocando a mão em sua testa, acalmando-o com pequenos versos de poesia, trechos de hinos, tudo que pudesse recordar para aliviar seu estado de tensão, tirar seus pensamentos daquela situação estranha e peculiar que era o resultado da explosão que sofrera e cujos efeitos são sempre diferentes em cada caso.

Agora, depois de estar curado - tolice! com carta ou não, ele não acreditaria no que estava escrito naquele papel até que ela confirmasse com suas próprias palavras. Iria encontrá-la para ouvir a verdade de seus próprios lábios.

Era característica de Jimmie que em todas as desculpas, motivos e explicações que havia forjado em sua mente, jamais suspeitou que Louise o abandonara por razões financeiras. Era o melhor e mais nobre tributo que podia colocar aos pés de sua amada e analisando todos os motivos imagináveis que justificassem sua atitude começou a temer que, de alguma forma, involuntariamente, ele a houvesse ofendido. No entanto, nenhuma vez pensou em um motivo baixo, vil ou mercenário por parte dela. Se ela soubesse disso, seu coração ter-se-ia enternecido, mas Jimmie estava tão inconsciente do assunto quanto ela; acrescentar um motivo indigno à sua carta jamais lhe ocorreu.

Conhecia a cidadezinha onde ela morava. Calculou que, por causa da lentidão do serviço postal na França, ela provavelmente já teria regressado e estaria em casa antes da chegada da carta. O pensamento agitou-o, e decidiu pedir uma licença de uma semana e ir até ao fim para solucionar esse caso.

Mas não foi fácil conseguir uma licença em tempo de guerra. Sabia que necessitava pelo menos de um dia para chegar até a casa de Louise, outro dia pra voltar e mais um dia para lá permanecer. Se as conexões estivessem ruins, poderia até levar mais tempo, portanto, decidiu pedir uma semana.

Aquela noite, ao dormir, resolveu chamar Marjorie e, efetivamente, ao despertar nas agora já familiares condições do Mundo do Desejo, teve consciência plena de que Marjorie vinha ao seu encontro. Portanto, não ficou surpreso quando essa linda jovem, sorrindo e, evidentemente, com um excelente bom humor, apresentou-se a ele.

Jimmie começou logo a contar-lhe a história de sua aflição na esperança de Marjorie sensibilizar-se com ele e se prontificar a ajudá-lo. Mas calculou mal, pois tudo que sua anfitriã fez foi rir-se dele. Se as pessoas que julgam que o outro mundo seja um lugar de tristeza fúnebre, de desespero e desesperança, como ficariam surpresos ao presenciar aquela cena e como perderiam o temor da morte.

Marjorie estava morta. Esta jovem havia sido arrebatada de sua família por aquele implacável Rei dos Terrores e, de acordo com todas as crenças geralmente aceitas, ela podia ser tudo menos o que realmente era - feliz, alegre com a pura alegria de viver feliz devido às condições nas quais vivia, livre de todas as necessidades limitadoras da vida física, dor, exaustão, as dez mil pequenas coisas que jamais se elevam além do umbral da consciência, mas que agregadas equivalem a um desconforto contínuo. Mas, acima de tudo, feliz pois não estava separada de sua família, ainda que eles estivessem separados dela.

Esta condição, aparentemente anómala, derivava do facto de que todas as noites ela podia encontrá-los no plano do desejo, falar com eles e “visitá-los”, e embora eles não pudessem conservar a memória desses encontros, para ela não existia essa limitação. Assim percebia-se verdadeiramente que toda separação estava do lado deles, não do dela. Por esse motivo, não há por que surpreender-se e reconhecer sua felicidade. Por que não haveria de sentir-se feliz?

Mas Jimmie pensou que ela estava feliz demais, pois ele sentia-se muito infeliz ou julgava-se estar assim, e precisava de consolo. Além disso, embora não admitisse, esperava que Marjorie dissesse alguma coisa sobre Louise e por que havia agido daquela maneira. Pressentia que Marjorie devia saber. Não seria correcto perguntar, mas, talvez, ela proferisse, espontaneamente, algumas palavras de consolo. Esses pensamentos de Jimmie não passaram desapercebidos a Marjorie por nenhum momento, e era por isso que ela estava rindo. Jimmie havia chegado à conclusão que era muito importante e esta era uma lição que ele deveria aprender sobre o assunto.

 

CAPÍTULO XI

LUZ NOVAMENTE

Jimmie estava procurando compaixão. Sentia realmente que não tinha sido bem tratado e havia chamado Marjorie com a ideia confusa de que talvez ela pudesse explicar-lhe por que Louise tinha agido daquela maneira tão extraordinária. Nos reinos superiores, o conhecimento nem sempre é adquirido da mesma maneira que o obtemos no mundo físico, mas uma alma avançada pode, com frequência, conhecer coisas simplesmente fixando sua atenção nelas.

Jimmie estava bem consciente desse fato, mas estava duplamente impedido de usá-lo. Em primeiro lugar, não estava ainda adiantado o suficiente para obter informações por este meio. E depois, neste caso particular, não teria sido correcto tentar saber a causa de Louise ter procedido daquela forma, a não ser, fazendo-o pessoalmente.

Mas restava uma pequena possibilidade de que Marjorie soubesse algo sobre o assunto e poderia dar-lhe algumas indicações; também esperava que ela tivesse pena dele e, sendo assim, o animasse, mesmo que não lhe desse nenhuma informação real.

Mas Marjorie, embora tivesse acudido ao seu chamado de ajuda, não tinha vindo pelo que ele esperava. Ele sabia que Marjorie podia sentir, pelas vibrações que o rodeavam, que ele estava possuído por uma grande tristeza e imaginava que ela estaria propensa a ter pena dele, interessada e pronta para oferecer-lhe ajuda, de maneira que ficou um pouco chocado por vê-la tão cheia de vida, de felicidade com uma pura alegria de viver. Aparentemente, a compaixão estava naquele momento muito longe do pensamento de Marjorie.

- Oh, Jimmie, estou tão feliz por ter-me chamado. Imaginava quando você poderia vir. Tenho tantas coisas para lhe contar; as coisas mais lindas com as quais você jamais sonhou.

Jimmie olhou para ela, contemplativamente, mas permaneceu em silêncio.

- Fui promovida, Jimmie, não é ótimo? Agora posso trabalhar mais e ser mais útil. Deram-me uma pequena classe para ensinar algumas criancinhas que acabaram de falecer e elas são tão encantadoras! Estavam muito amedrontadas e assustadas, mas procuro mostrar-lhes que não há nada a temer e que só estão rodeadas de amor. É tão confortante e lindo vê-las deixar suas conchas de terror e desabrochar como fazem as pequenas flores quando o sol brilha sobre elas. Sinto-me tão feliz que não consigo ficar quieta.

Que lição proveitosa teria sido para alguns sofredores da vida terrena se pudessem ver aquela jovem radiante testemunhando a felicidade daquele plano em que estava vivendo. Estava também transfigurada com a alegria do reino para o qual conduziria aquelas criancinhas que haviam sido arrebatadas de seus corpos pelas frágeis condições no plano físico. Se os parentes dessas crianças pudessem vê-las, dedicariam sua tristeza e compaixão não para as que “morreram”, mas para aquelas que ficaram enfrentando as contínuas lutas e as duras experiências da terra.

Jimmie tentou parecer alegre e conseguiu felicitá-la pelo trabalho importante que lhe havia sido designado; mas o pensamento dominante não abandonava sua mente tão facilmente e ele exclamou:

- Estou com problemas, Marjorie.

No mesmo instante o rosto de Marjorie tornou-se grave enquanto Jimmie continuou:

- Você tem visto Louise ultimamente?

- Não, Jimmie, não tenho. Ando tão ocupada e, como é de seu conhecimento não vou ao plano terreno. A única vez que vejo alguns dos meus amigos da terra é quando vêm aqui durante seus sonos, e isto não é frequente. Tenho certeza que não há nada muito sério perturbando-o. Como sabe, você e Louise estão no plano da terra e pode vê-la quando quiser. Foi uma sorte que essa pergunta tenha sido dirigida a mim e vou esquecê-la completamente. Se você tivesse feito essa pergunta ao Irmão Maior por mera curiosidade, o que ele teria pensado!

O rosto de Marjorie desanuviara-se. Ela estava rindo novamente, mas sua observação causou um grande choque nele.

- Marjorie, tenho inveja daquelas criancinhas. Algum dia, se puder, quero vir até aqui para assistir uma dessas aulas. Agora vou voltar e seguir seu conselho, pois você me ajudou mais do que pode imaginar, talvez muito mais do que eu esperava. Você é uma verdadeira e querida amiga, Marjorie.

De volta a seu corpo físico, Jimmie meditou sobre as palavras dela e percebeu, cada vez mais, como se havia deixado levar por seu egoísmo. “Curiosidade!” Uma “questão de mera curiosidade”, certamente isso. Havia feito precisamente o que já sabia não deveria fazer. E ela não o repreendera nem encontrara falta nele, simplesmente o havia guiado de forma gentil e bondosa, a reconhecer o seu erro.

Decidiu que jamais voltaria a cometer semelhante falta e nunca mais esqueceria o lema “Serviço”.

* * *

- Mamã! Eu posso ver! Oh, mamã, mamã! Eu posso ver!

- Pode? Oh, querida, tem certeza? Não esforce seus olhos. Lembre-se do que o médico recomendou. É melhor eu colocar a venda novamente.

- Não, não. Não suporto mais essa horrível venda. Eu posso ver. Vi aquele pinheiro solitário lá no cume, tão bem como sempre o vi. Não coloque a venda de novo. Vou manter meus olhos fechados e o resultado será o mesmo. Prometo. De verdade, eu prometo. E vou sair para um pequeno passeio sozinha. Prometo que não vou esforçar meus olhos. Vou mantê-los quase cerrados.

- Que menina obstinada! Não vá sair e pôr tudo a perder agora. É melhor deixar que eu ponha as vendas de volta e procure descansar um pouco.

- Lembre-se que sou uma enfermeira, mamã, e que conheço bastante sobre isso. Não vou forçar meus olhos nem um pouco, mas preciso sair para uma pequena caminhada, senão acho que vou morrer. Por favor, mamã! Conheço o caminho de olhos vendados, por isso é suficiente olhar só um pouco.

- Aonde você quer ir?

- Só até ao velho pinheiro lá no cume e depois eu volto. Sei o caminho no escuro e acredito que se eu for até lá sozinha e tocar a velha árvore, isso me porá boa novamente.

- Está bem, mas não demore, senão eu irei buscá-la, e não tente abrir os olhos. Eles ainda estão muito fracos.

O sol incidia directamente sobre a pequena casa de campo onde esta conversa se desenrolava, saturando aquela bonita terra de colinas suaves com sua glória de verão, salpicando o terreno entre as árvores com vibrantes reflexos dourados e marcando com pronunciado relevo as casas das cidades ao longe e as ondulações da floresta próxima; realçava ainda, em sua grandeza ímpar, a grande árvore que erguia sua copa muito acima de suas companheiras em uma ligeira elevação algumas centenas de metros atrás da casa.

Era em direcção a esta árvore que uma jovem se dirigia, saindo pela porta traseira da casa e portando sobre sua cabeça um antiquado chapéu de sol que, efectivamente protegia seu rosto da luz brilhante que a rodeava. Andava devagar como se não estivesse muito segura do caminho e estendia, parcialmente, uma das mãos para a frente, como fazem aqueles que andam no escuro.

Havia um caminho próprio que levava à grande árvore, pois era o atalho em direcção ao povoado. Era sempre muito usado por aqueles que preferiam andar no frescor da mata em vez de ir pela estrada, um pouco mais longa.

A jovem caminhava como se o atalho lhe fosse familiar. Sem dúvida ela o conhecia bem, pois tinha nascido e crescido naquela casinha, onde sua mãe, agora, se entregava à tarefa de lavar os pratos enquanto dirigia ansiosos olhares para a figura que se afastava.

Não havia perigo para a viajante temerária, ela sabia, porque ali, no grande Estado de Nova York, não havia exércitos invasores, nem artilharia ou bombas assassinas. Nenhum perigo ameaçava aquela graciosa figura no caminho, nem homem nem animal, mas mesmo assim a mãe aparecia muitas vezes à porta para acompanhar carinhosamente com o olhar, aquele velho chapéu que avançava com tranquilidade até a grande árvore plantada no cume do morro. Não, não havia nenhum perigo, pois a guerra estava longe desta terra pacífica.

Agora o chapéu de sol estava perto da árvore e logo iria retomar. Mas, pare! A mãe tirou seus óculos e limpou-os em seu avental. Alguém mais andava pelo caminho. Alguém usando um uniforme e parecendo um soldado. Evidentemente não podia ser um. Às vezes, soldados passavam pelo pequeno povoado, mas não com frequência e todos os rapazes de lá tinham ido para a guerra, Estranhos nunca andavam por esse caminho. Bem! O soldado havia parado a portadora do chapéu de sol e estava conversando com ela, sem dúvida indagando-lhe sobre o caminho. Quanto tempo despendido para perguntar o caminho! Filha, Filha! Qual é o problema? Há coisas melhores a fazer do que parar e conversar com um soldado estranho! O soldado envolvia a jovem em seus braços e abraçava-a! Oh! isto é terrível!

A mãe saiu apressadamente pela porta traseira e começou a percorrer o caminho. Sua aflição não durou muito pois Louise vinha retomando serenamente com um oficial alto que a conduzia pelo braço e que se dirigia a ela chamando-a “Louise” e com uma familiaridade como se a conhecesse há muito tempo.

Nessa tarde, quando todos se sentaram na varanda, as coisas se esclareceram. Jimmie informara-se onde ficava a casa e de início pensou em ir a cavalo pela estrada, mas depois alguma coisa o fez mudar de ideia e seguiu a pé pelo atalho.

- Interessante, estava para seguir pelo caminho mais longo, pela estrada, quando um amiguinho meu, que conheço pelo nome de “Buster”, chamou-me da floresta e indicou-me o caminho certo.

- Buster, Buster - disse Louise pensativamente - Não me lembro de nenhum menino pelos arredores que tenha esse nome.

- Não. Esta é uma outra história que contarei algum dia, mas Buster achava que me devia um favor e assim pagou sua dívida perfeitamente.

Louise também tinha sua história para contar. Tinha sido enviada para um posto próximo ao “front” onde havia sido instalado um hospital provisório e onde enfermeiras e cirurgiões viam-se obrigados a trabalhar além de seus limites. Uma noite, um avião inimigo lançou muitas bombas sobre esse local e uma delas explodiu perto de Louise, quando ela tentava socorrer alguns feridos sob sua responsabilidade. Um clarão ruidoso, um violento choque na cabeça e não teve conhecimento de mais nada até que acordou em um hospital em Paris com os olhos vendados e sua visão quase perdida.

Seu primeiro pensamento foi para Jimmie, e tomou a decisão de que jamais iria sobrecarregá-lo com uma esposa cega e desfigurada, daí a carta que, no desespero de seu coração, havia escrito apesar de todas as proibições e que uma outra enfermeira colocara no correio.

A desfiguração havia cedido por um tratamento eficiente, mas a visão foi-se tornando cada vez pior e ela foi enviada de volta para casa - uma pequena e desolada peça destroçada pelo naufrágio causado pela guerra que se abateu sobre aquela terra pacífica.

Mas nos últimos dois dias, fora capaz de vislumbrar uma pequena luz e naquela manhã tendo retirado a venda cuidadosamente, descobriu que, apesar de embaraçada e distorcida, sua visão estava voltando.

- Oh! Deus é bom para mim, Jimmie. Ele devolveu a minha visão e Ele deu-me algo mais valioso do que isso.

- O quê?

- Até onde você gostaria de saber?

* * *

Muito bem! Esta não é uma história de amor, mas uma história da Terra dos Mortos que Vivem. E, como elas podem ser separadas? Pois todo o amor é de Deus, cujo nome é Amor e, para aqueles que fazem Sua vontade, não há nada em todo o universo nem neste mundo ou no outro, que não seja Amor. Existe sacrifício e serviço mas esses são somente as evidências do Amor que foram postas em acção. Na Terra dos Mortos que Vivem também há Amor, e nenhum relato desta Terra pode ser verdadeiro se não falar do Amor que lateja e pulsa por todos os seus formosos mundos. Até mesmo naqueles reinos obscuros, sobre os quais não falei, existe uma luz sutil que se filtra sempre. E a dor que ali é sentida, não é nada mais do que a preparação para o Amor que um dia encherá todo o universo, quando o conhecimento de Deus cobrir a Terra como as águas cobrem o mar.

FIM

 

 



[1] Expressão idiomática norte-americana que quer dizer: realmente é verdade.

[2] Um dos Irmãos Maiores da Ordem Rosacruz fundada por Christian Rosenkreus.

[3] Y = Young Men’s Christian Association (Associação Cristã de Rapazes).


 

 

 

 

 

 

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